Pedagogia da libertação: O encontro com uma pedagogia da alteridade



sumário


iNTRODUÇÃO.................................................................................................................

I – A sociedade de consumo e a negação do encontro humano....

ii – Homem e mulher: vocacionados a serem mais humanos............

1. A Atualidade da Pedagogia da Libertação....................................................................

2. A Concepção Antropológica Freireana..........................................................................

iiI – Alteridade interdita: ação ‘dia-bólica’.............................................

1. O Discurso de uma Pretensa Neutralidade.....................................................................

2. A Educação Bancária: uma Escola de Antidialogicidade..............................................

IV – Alteridade e libertação............................................................................

1. O Encontro Inter-Humano como Lugar da Pronúncia do Mundo..................................

3. O Diálogo Começa na Busca do Conteúdo Programático.............................................

4. Humanização: O Encontro Inter-Humano na Dialogicidade.........................................

conclusão.................................................................................................................

bibliografia.............................................................................................................




introdução

Ao introduzir o tema da alteridade, a partir de uma leitura da pedagogia da libertação de Paulo Freire, desejamos explicitar uma proposta educativa que seja resposta para os desafios atuais. Acreditamos que é no autêntico encontro com o outro e a outra que os seres humanos vão se constituindo sujeitos da própria história. É no encontro pessoa-pessoa, que a humanidade vai acontecendo. Para nós, portanto, a alteridade não é outra coisa senão o encontro que nos faz humanos. Fazendo das palavras do teólogo espanhol, Afonso García Rubio, as nossas palavras, podemos dizer que:
É constitutivo da pessoa humana o ser e o existir com e junto a outras pessoas. E, assim, o encontro pessoa-pessoa é necessário para a humanização do ser humano. Encontro vivido como experiência de abertura ao outro, respeitado e aceito como diferente experiência concretizada no ‘ver’ e no ‘ser visto’ humanamente, no ‘falar’ e no ‘escutar’ humanamente, na ajuda mútua prestada no agir, no assumir livremente que a humanização depende da aceitação prática de que a co-humanidade é constitutiva do ser pessoal.[1]
Ora, ao falarmos no tema da alteridade, salta aos olhos que, no atual contexto de mundo, vivemos uma cultura de negação de um autêntico encontro inter-humano.
Se em 1930, Freud publicava o livro O mal-estar na civilização, colocando em evidência a crise do homem moderno, hoje, podemos dizer que vivemos um mal-estar pós-moderno. Aliás, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman escreveu um livro justamente com título O mal-estar da pós-modernidade.
Para o sociólogo polonês, o nosso tempo é marcado por uma sensível negação da alteridade. O homem pós-moderno, identificado pela sociedade de consumo, tem dificuldade de incluir na sua agenda questões que envolvam a solidariedade, o respeito, a tolerância. Por isso, vivemos uma crise ética sem precedentes. Assim, a sociedade pós-moderna “vive num estado de permanente pressão para se despojar de toda interferência coletiva no destino individual, para desregulamentar e privatizar”[2].
É diante desse contexto, de absolutização do lucro em detrimento das pessoas, que outros modelos e concepções de mundo, alicerçados num sincero amor à vida, devem ser assumidos por todos os homens e mulheres de boa vontade. Assim, é no desejo e na esperança de que um outro mundo é possível, que queremos enfatizar, nesse trabalho, uma proposta pedagógica que se caracterize por um profundo amor à humanidade. Trata-se da pedagogia da libertação de Paulo Freire.
Uma pedagogia que foi encarnando diversos rostos: pedagogia do oprimido, pedagogia problematizadora, pedagogia do diálogo, pedagogia da esperança, pedagogia crítica, pedagogia do amor, etc. Não obstante a todas essas características, é nosso desejo realçar a proposta de Freire como uma pedagogia da alteridade.
Acreditamos que a educação, seja ela formal ou não, tem o desafio de promover espaços de fomentação da “sensibilidade solidária na dinâmica do desejo das pessoas”[3]. E a pedagogia de Freire vem ao encontro desse desejo. Participar na luta pela construção de um mundo mais justo, mais fraterno, mais acolhedor, mais cuidadoso, enfim, mais humano é tarefa de todas as pessoas que se identificam com a proposta de Paulo Freire.
Ao buscarmos fazer uma aproximação do tema da alteridade com a pedagogia da libertação, não é nossa intenção fazer uma espécie de inventário na obra freireana quanto ao uso e significado do vocábulo ‘alteridade’. Queremos, entretanto, a partir da proposta freireana confirmar a tese de que a alteridade, enquanto encontro com o outro e a outra, é condição do processo de humanização.
É na obra Pedagogia do oprimido, escrita por Freire no final dos anos 60, quando se encontrava exilado no Chile, que vamos encontrar os temas nucleares do seu pensamento. Nas palavras do prof. Andreola,
Pedagogia do oprimido não significa apenas um livro, o mais importante de Paulo Freire. Parece-me correto afirmar que os escritos de Freire que o precederam e aqueles que o seguiram representam antecipações e desdobramentos dessa obra. A ação político-pedagógica freireana, ao longo de toda a sua trajetória, traz a marca unificadora dessa grande utopia concreta que é a construção coletiva de uma ‘pedagogia dos oprimidos’.[4]
Por isso, ao procurarmos explicitar o tema da alteridade em Freire o faremos a partir de uma leitura da Pedagogia do oprimido. Entretanto, isso não significa exclusividade. Buscaremos, de modo explícito ou não, pautar a nossa reflexão a partir de outras obras freireanas, a saber: Ação cultural para a liberdade (1976), Pedagogia da esperança (1992), Medo e ousadia (1987), Pedagogia da autonomia (1996), Professora sim, tia não (1993).
A nossa exposição dividir-se-á em quatro partes. No primeiro capítulo, procuraremos a partir de diversos autores contemporâneos e de tradição crítica, evidenciar que na sociedade de consumo, alicerçada no prisma do lucro, não há espaço para o verdadeiro encontro inter-humano. Queremos explicitar um cenário de mundo onde a dimensão da alteridade é negada.
Num segundo momento, abordaremos os principais traços da compreensão antropológica freireana. Trata-se de confrontar o sonho que Paulo Freire idealizou para a comunidade humana com o prisma da sociedade capitalista, em que o lucro está acima das pessoas.
Já na terceira parte, a partir de Freire, buscaremos traçar as principais características de uma educação tradicional, a concepção bancária, destacando seu caráter antidialógico. Uma compreensão e prática pedagógica que perpetua as relações de negação de um autêntico encontro inter-humano.
Finalmente, no último momento da nossa reflexão, apontaremos alguns aspectos centrais da educação libertadora, que fazem dessa proposta freireana uma pedagogia da alteridade. Aliás, já antecipando, é na dialogicidade, enquanto princípio inerente à pedagogia do oprimido, que a alteridade, entendida como o encontro pessoa-pessoa no processo de humanização, expressa-se como autêntica pedagogia da libertação.


I – A sociedade de consumo e a negação do encontro humano

Discutir o tema da alteridade é, no contexto educativo, de certa forma, contrastar com uma sociedade em que teima tolher a palavra do outro. O mundo contemporâneo, pautado em princípios neoliberais, parece ter dificuldade em oferecer espaços em que a participação democrática e a cidadania sejam verdadeiramente valorizadas. Nesse sentido, as palavras de Robert W. McChesney, são ilustrativas:
Uma cultura política vibrante precisa de grupos comunitários, bibliotecas, locais para reuniões públicas, associações voluntárias e sindicatos que propiciem formas de comunicação, encontro e integração de cidadãos. A democracia neoliberal, com sua idéia de mercado über alles, nunca tem na mira esse setor. Em vez de cidadãos, ela produz consumidores. Em vez de comunidades, produz shopping centers. O que sobra é uma sociedade atomizada, de pessoas sem compromisso, desmoralizadas e socialmente impotentes.[5]
Herbert Marcuse (1898-1979), filósofo associado à Escola de Frankfurt, parece ter expressado com eqüidade a maneira como a sociedade industrial foi impondo seu paradigma de vida. “O povo, eficientemente manipulado e organizado, é livre; a ignorância e a impotência, a heteronomia introjetada, é o preço de sua liberdade”, diz Marcuse em Eros e civilização.[6]
A análise de Marcuse mostra como a ideologia consumista foi se impondo. Uma imposição que foi se fazendo em nome da liberdade e da democracia. A sociedade tecnológica contemporânea concedeu à humanidade um elevado nível de satisfação, contudo, em compensação, despojou-o da capacidade de se relacionar, de interagir com os outros, da sensibilidade poética e lúdica, da liberdade de pensamento e consciência.
Erich Fromm (1900-1980), sociólogo e psicanalista, também integrante da escola de Frankfurt, em Ter ou ser?, argumenta que o mundo capitalista, em vez de amar as pessoas, ama as coisas, o lucro, o ter. No paradigma da sociedade de consumo, o ter se coloca como princípio de identidade: “eu sou aquilo que tenho ou consumo”.  Segundo Fromm “o modo ter de existência não se estabelece por um processo vivo e criativo entre o sujeito e o objeto; ele transforma em coisas tanto o sujeito como o objeto. A relação é de inércia, e não de vida”[7].
O ser humano da sociedade hodierna vive uma contradição absurda: a sensação paradoxal de liberdade onde não existe liberdade. Em Ética da vida, Leonardo Boff, concordando com os pensadores de Frankfurt, em particular com Marcuse, escreve que
O sistema do capital e do mercado conseguiu penetrar em todos os poros da subjetividade pessoal e coletiva, logrou determinar o modo de viver, de elaborar as emoções, de relacionar-se com os outros. Assim se divulga o sentimento de que a vida não tem sentido, se não vier dotada de símbolos de posse e de status, com certo nível de consumo de bens.[8]
O paradigma consumista se apresenta como um ideal de vida. No entanto, nem todas as pessoas podem participar desse ideal. Em outras palavras, as benesses do mundo capitalista é privilégio de quem tem poder econômico. E estes são poucos. Conforme Hugo Assmann, o capitalismo, na sua configuração atual, trabalha
com uma perspectiva de ‘cenário futuro’, para o ano 2010, entre 700 milhões e um bilhão de consumidores potenciais, com apreciável poder aquisitivo. Alguns poucos aumentam a cifra da clientela potencial ‘interessante’ para ao redor de um bilhão e meio. Isso numa humanidade de, previsivelmente, 6,5 a 8 bilhões de habitantes. É para esse recorte de clientela que se planeja o ‘crescimento econômico’. Como dá para ver, a ‘massa sobrante’, isto é, o número dos ‘desinteressados’ e ‘descartáveis’, é assustador.[9]
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman lembra que cada sociedade, em épocas diferentes, produziu seus estranhos, isto é, pessoas que não se enquadravam nos esquemas ditos ‘normais’. Para o mundo pós-moderno, os estranhos são aqueles que não se enquadram na era do consumo. Deparamo-nos com um modelo social em que ser pobre é ser criminoso. Estar fora do mundo do consumo é ser a ‘sujeira’ deste mundo. Numa expressão de Z. Bauman, são consumidores falhos:
Uma vez que o critério da pureza é a aptidão de participar do jogo consumista, os deixados fora como um ‘problema’, como a ‘sujeira’ que precisa ser removida, são consumidores falhos – pessoas incapazes de ser ‘indivíduos livres’ conforme o senso de ‘liberdade’ definido em função do poder de escolha do consumidor. São eles os novos ‘impuros’, que não se ajustam ao novo esquema de pureza.[10]
O panorama de mundo que se apresenta não é nada tranqüilizador. De fato, como bem caracterizou Fritjof Capra, no livro O ponto de mutação, a humanidade vive uma crise de proporções nunca vistas em toda a história, pois “pela primeira vez, temos que nos defrontar com a real ameaça da extinção da raça humana e de toda a vida do planeta”[11]. Nesse mesmo sentido, Leonardo Boff dirá que vivemos uma crise civilizacional, que se expressa na falta de cuidado pela vida. Na era da comunicação, as pessoas nunca se sentiram tão sozinhas: “a sociedade contemporânea, chamada sociedade do conhecimento e da comunicação, está criando, contraditoriamente, cada vez mais incomunicação e solidão entre as pessoas”[12].
Diante deste cenário de mundo, onde os laços de humanidade parecem estar em processo de desintegração, torna-se explícito o desafio de pensarmos, concretamente, outras formas de conceber a vida. Acreditamos que um outro mundo é possível. Um mundo de paz, de solidariedade, de justiça, de comunhão. No entanto, este sonho de mundo não é algo que se encontra pronto, mas é algo que se vai construindo na caminhada.
O sofrimento dos pobres, dos insultados pela sociedade de consumo, interpela-nos a assumir uma atitude comprometida com a causa da humanização. Nas palavras do teólogo Alfonso G. Rubio
No encontro pessoa-pessoa com o injustiçado e marginalizado, a interpelação que vem do outro torna-se mais urgente e questionadora, destruindo as falsas seguranças e as racionalizações com que costuma ser encoberta a injustiça e a omissão diante das suas causas. O encontro pessoa-pessoa é necessário para a humanização do ser humano. Trata-se de um encontro, para além de toda perspectiva privatizante e intimista, que exige compromissos pela transformação de estruturas e sistemas que obstaculizam ou impedem a personalização de cada seu humano.[13]
O projeto de uma comunidade humana, onde o direito universal a uma vida decente e dignificada seja defendido depende de uma cultura solidária. E esta cultura é criada a partir de processos educativos que sensibilizem e comprometam as pessoas no processo de transformação. É nessa perspectiva que se insere a pedagogia de Paulo Freire.


II – Homem e mulher: vocacionados a serem mais humanos

Diante do cenário de mundo descrito brevemente, no primeiro capítulo, podemos dizer que a humanidade vive uma crise sem precedentes. De fato, é uma crise que perpassa a civilização como um todo: “hoje vivemos uma crise dos fundamentos de nossa convivência pessoal, nacional e mundial”[14], escreve Leonardo Boff no livro Crise: oportunidade de crescimento.  No entanto, concordando com Boff, somos convidados a perceber a situação de crise não com olhos de desesperança ou com atitudes lamuriosas, mas percebê-la “como a ruptura necessária para a abertura libertadora de um horizonte mais vasto, mais cheio de vida e de vivência de sentido”[15].
E foi com um olhar de esperança, aliado a uma firme determinação de luta, que Paulo Freire procurou assumir com o povo uma dinâmica pedagógica de libertação. Na percepção freireana, as situações promotoras de uma cultura de morte não têm a última palavra. Conforme Miguel Arroyo
Paulo, com seu olhar de educador, único olhar educativo, vê a desumanização roubada, a proibição de ser, como um processo histórico não natural. Mas vê mais como educador: homens, mulheres, crianças, jovens, povos ‘na luta incessante de recuperação de sua humanidade’. Eles e elas sujeitos de sua recuperação, humanização, de sua luta por ser, por superar as condições históricas que os proíbem de ser. Os oprimidos educadores de si mesmos, porque lutando pela recuperação de sua humanidade.[16]
Assim, Paulo Freire ao dedicar sua obra e sua vida “aos esfarrapados do mundo e ao que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam”[17], testemunhou e anunciou a possibilidade de um outro mundo. Um mundo alicerçado no paradigma de uma autêntica humanização, já em construção.

1. A Atualidade da Pedagogia da Libertação
Fazendo nossas as palavras de Ernani Maria Fiori, podemos dizer que “Paulo Freire é um pensador comprometido com a vida: não pensa idéias, pensa a existência”[18].  E o próprio Freire, na Pedagogia da esperança, confirma isso quando diz que para ele “interessou sempre muito mais a compreensão do processo em que e como as coisas se dão do que o produto em si”[19].
Enrique Dussel, em Ética da libertação, falando do processo de conscientização em Paulo Freire, argumenta que a pedagogia da libertação é uma proposta que não se restringe a contribuir com aspectos de melhoria cognitiva, mas “é uma pedagogia planetária que se propõe o surgimento de uma consciência ético-crítica”[20]. Diz ainda Dussel:
Buscando inspirar-se em Hegel, Merleau-Ponty, Sartre, Marcel, Mounier, Jaspers, Marx, Lukás, Freud e outros muitos, Freire desenvolve um discurso próprio a partir da realidade das vítimas do Nordeste brasileiro e da América Latina, para generalizar sua teoria e prática pedagógica na África primeiro e, posteriormente, em outros países periféricos, e também centrais. [...] Sua ação educadora tende [...] à produção de uma consciência ético-crítica que se origina nas próprias vítimas por serem os sujeitos históricos privilegiados de sua própria libertação. O ato pedagógico crítico se exerce no próprio sujeito e na sua práxis de transformação: a libertação assim é o ‘lugar’ e o ‘propósito’ desta pedagogia.[21]
Assim, à medida que a proposta freireana parte de um radical compromisso em prol da vida e do ser humano, particularmente aos que mais sofrem com o processo de desumanização, torna-se urgente o nosso dever em “dedicar nossos melhores esforços políticos, pedagógicos e epistemológicos para oferecer-nos a todos e a todas o que ainda é hoje uma utopia democrática”[22], a pedagogia do oprimido, assumida por Paulo Freire de forma incondicional.
Nas palavras de Miguel Arroyo
Bastará olhar os rostos desfigurados de crianças e adolescentes para não poder deixar de encará-los, como Paulo Freire o fez, para sentir que a infância excluída, oprimida, a infância negada nos interroga e nos pede algo mais do que o letramento, as contas, as noções elementares de ciências – pede algo mais do que merenda escolar. Essas crianças e adolescentes nos pedem o que Freire entendeu: que, como educadores de escola, recuperemos a humanidade que lhes foi roubada já desde a infância; que reconheçamos como excluídos e oprimidos: reaprendamos a pedagogia do oprimido.[23]
Um outro motivo que gostaríamos de arrolar, que nos faz crer na Pedagogia do oprimido como uma proposta e uma prática de educação humanizadora, comprometida com a defesa da vida, sendo, portanto, uma resposta diante de uma cultura individualista do “não tô nem aí”, propagada pela sociedade de consumo, é a dimensão da esperança. Ana Maria Freire, companheira de Paulo, lembra:
É preciso nutrir a esperança – essa coisa ontologicamente humana – que instaura a fé num futuro melhor e nos faz agir na direção da concretização das sociedades verdadeiramente democráticas. Não podemos correr o risco de morrermos todas e todos na angústia e na nostalgia impostas pelos neocolonialismos e imperialismos de quaisquer natureza. Devemos ter claro que a esperança, enquanto categoria política se planifica no amor. Esperança sem amor fraterno, revolucionário transformador ou pelo saber e pela ética radical perde a sua força, sua nitidez e sua clareza políticas.[24]
Freire foi um pedagogo coerente com aquilo que ele pensava e dizia. Assim, é interessante perceber como Freire foi aprendendo com as pessoas. A própria Pedagogia do oprimido é resultado da sua experiência educativa, vivida no Brasil e nos primeiros anos de exílio, no Chile (1964-1969). O próprio Paulo Freire afirma que a Pedagogia do oprimido expressa “reações de proletários, camponeses ou urbanos, e de homens de classe média, que vimos observando, direta ou indiretamente, em nosso trabalho educativo”[25].
Um outro exemplo, que testemunha a coerência dialógica de Freire, é o fato de ter reconhecido e acolhido às críticas que lhe fizeram, logo nos primeiros anos da Pedagogia do oprimido, a respeito de sua linguagem marcadamente machista. Na Pedagogia da esperança, Freire faz memória as inúmeras cartas de mulheres norte-americanas que o fizeram perceber a sua contradição:
É que, diziam elas, com suas palavras, discutindo a opressão, a libertação, criticando, com justa indignação, as estruturas opressoras, eu usava, porém, uma linguagem machista, em que não havia lugar para as mulheres. [...] Daquela data [1970-1971] até hoje me refiro sempre a mulher e homem ou seres humanos. Prefiro, às vazes, enfeiar a frase explicitando, contudo, minha recusa à linguagem machista.[26]
Por fim, é importante lembrar que a pedagogia freireana não reduz a educação restritamente ao campo cognitivo e à escola. Freire, na obra Medo e ousadia, declara que a pedagogia da libertação ultrapassa os muros da escola.
[Além da escola] há outro lugar em que a existência e o desenvolvimento da educação libertadora é possível, que é precisamente no interior dos movimentos sociais. Por exemplo, o movimento de libertação das mulheres, o movimento ecológico, o movimento das donas-de-casa contra o custo de vida [...]. Na intimidade destes movimentos, temos aspectos da educação libertadora que algumas vezes não percebemos.[27]
Portanto, à medida que desejamos propor uma reflexão sobre o tema da alteridade, enquanto princípio de uma educação humanizadora, comprometida com a causa dos que mais sofrem as conseqüências da lógica excludente, é que a proposta de Paulo Freire é pertinente.

2. A Concepção Antropológica Freireana
Oportunizar a cada homem e a cada mulher expressarem sua vocacionalidade de serem cada vez mais humanos é a intenção de Freire ao escrever a Pedagogia do Oprimido. Favorecer para que todas as pessoas possam “aprender a dizer a sua palavra”  e não apenas repetir a palavra dos outros, é o desejo de uma proposta pedagógica que se faz antropologia. A proposta freireana “não pretende ser método de ensino, mas sim de aprendizagem; com ele, o homem não cria sua possibilidade der ser livre, mas aprende a efetivá-la e exercê-la”[28].
A negação da vocacionalidade humana, o ser mais, é, segundo Freire, viver um processo de desumanização. Assim, a Pedagogia do oprimido busca apontar para a vocação do ser mais, como condição de humanização, e, ao mesmo tempo, denunciar as situações que levam a humanidade a ser menos, isto é, negar sua vocação.
Diante dessas duas possibilidades, de negação ou assunção do ser mais humano, é que a humanização pode ser reconhecida como vocação de cada homem e de cada mulher:
Vocação negada, mas também afirmada na própria negação. Vocação negada na injustiça, na exploração, na opressão, na violência dos opressores. Mas afirmada nos anseios de liberdade, de justiça, de luta dos oprimidos, pela recuperação de sua humanidade roubada.[29]
E Freire segue, afirmando:
A desumanização, que não se verifica apenas nos que têm sua humanidade roubada, mas também ainda que de forma diferente, nos que a roubam, é distorção da vocação de ser mais. É distorção possível na história, mas não vocação histórica. Na verdade, se admitíssemos que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, não teria significação.[30]
O ser mais e o ser menos não acontecem no mundo das idéias, mas numa realidade histórica, num contexto real, concreto, objetivo. É diante dessas duas realidades que o ser humano vai tomando consciência da vocacionalidade. Tanto a humanização como a desumanização são situações que manifestam as possibilidades humanas enquanto seres inconclusos. Segundo Paulo Freire
Mais uma vez os homens, desafiados pela dramaticidade da hora atual, se propõem a si mesmos como problema. Descobrem que pouco sabem de si, de seu ‘posto o cosmos’, e se inquietam por sabem mais. Estará, aliás, no reconhecimento do seu pouco saber de si uma das razões desta procura. Ao se instalarem na quase, senão trágica descoberta do seu pouco saber de si, se fazem problema a eles mesmos. Indagam. Respondem, e suas respostas os levam a novas perguntas.[31]
A desumanização, na compreensão freireana, não afeta apenas o homem e a mulher vítimas de opressão. Na compreensão de Freire, aqueles que vivem do roubo da humanidade alheia, isto é, os opressores, acabam negando sua própria vocação de ser mais. Na Pedagogia da esperança, Freire escreve que “o opressor se desumaniza ao desumanizar o oprimido, não importa que coma bem, que vista bem, que durma bem”[32]. Portanto, a desumanização é sempre um processo de negação da vocação ontológica do ser humano em ser mais que atinge tanto o oprimido como o opressor.
As distorções da vocacionalidade humana são situações que acontecem na história. No entanto, isso não significa entendê-las como determinismos da histórica. Nas palavras freireanas
A desumanização, que não se verifica apenas nos que têm sua humanidade roubada, mas também ainda que de forma diferente, nos que a roubam, é distorção da vocação de ser mais. É distorção possível na história, mas não vocação histórica. Na verdade, se admitíssemos que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, não teria significação. Esta somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos.[33]
Conforme nosso educador, admitir a desumanização como parte da vocação histórica do ser humano, seria adotar uma atitude de negação das possibilidades de transformação. As distorções da vocação humana não são fatos que derivam de um destino predeterminado. A desumanização é conseqüência “de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos[34].
A história não pode ser compreendida de forma acabada, estática. Pelo contrário, deve ser compreendida enquanto ação humana e, portanto, dinâmica e modificável. Nesse sentido, na Pedagogia da esperança, Freire argumenta que “homens e mulheres, ao longo, da história [...] inventamos a possibilidade de nos libertar na medida em no tornamos capazes de nos perceber como seres inconclusos, limitados, condicionados, históricos”[35].
Na educação libertadora não há lugar para negativismo. Freire, na Pedagogia da autonomia, lembra que uma das exigências da educação transformadora é compreender a “História como possibilidade e não como determinação. O mundo não é. Está sendo”[36]. Comentado esse princípio freireano, da história como um processo em construção, Henry Giroux, no escrito em Cultura, poder e transformação na obra de Paulo Freire, afirma:
Igualmente importante é a compreensão de que a dominação é mais do que a simples imposição de um poder arbitrário de um grupo sobre outro. Em vez disso, para Freire, a lógica da dominação representa uma combinação de práticas materiais e ideológicas, históricas e contemporâneas que nunca têm sucesso total, sempre incorporam contradições, e estão sempre sendo disputadas dentro de relações assimétricas de poder. [...] Assim, como as ações dos homens e mulheres são limitadas pelas pressões a que estão submetidos, também eles criam estas pressões e as possibilidades que podem decorrer de seu questionamento.[37]
O ser humano, enquanto ser histórico, sendo consciência de si e consciência do mundo, porque é “corpo consciente”[38] estabelece entre os condicionamentos e sua liberdade uma relação dialética. Para o ser humano os condicionamentos não são barreiras instransponíveis, mas situações-limites a desafiar sua capacidade para que encontre respostas de superação de tais limites.
No momento mesmo em que os homens as apreendem [situações-limites] como freios, em que elas se configuram como obstáculos à sua libertação, em transformam em ‘percebidos destacados’ em sua ‘visão de fundo’. Revelam-se, assim, como realmente são: dimensões concretas e históricas de uma dada realidade. Dimensões desafiadoras dos homens, que incidem sobre elas através de ações que Vieira Pinto chama de ‘atos-limites’ – aqueles que se dirigem à superação e à negação do dado, em lugar de implicarem sua aceitação dócil e passiva.[39]
Na visão freireana, as situações-limites não se constituem, em si, motivo de desesperança. Perceber as situações de forma desesperada ou não, depende da percepção daquele que olha a partir de um determinado momento histórico. Assim, para um olhar ingênuo, os limites podem ser percebidos como barreiras intransponíveis. Porém, nas palavras de Freire, “no momento em que a percepção crítica se instaura, na ação mesma, se desenvolve um clima de esperança e confiança que leva os homens a se empenharem na superação das ‘situações-limites’”[40].
Na Pedagogia da esperança, falando do sonho por uma educação humanizadora, Freire escreve que a concretização deste sonho “é sempre processo, e sempre devir, passa pela ruptura das amarras reais, concretas, de ordem econômica, política, social, ideológica etc., que nos estão condenando a desumanização”[41]. E nesse mesmo sentido, podemos lembrar Ernani Maria Fiori, quando diz que “a educação é o esforço permanente do homem por constituir-se, buscando a forma histórica na qual possa re-encontrar-se consigo mesmo, em plenitude de vida humana, que é, substancialmente, comunhão social”[42].
No processo de humanização, vivido em comunhão, é que a dimensão da alteridade se insere. Acolher o outro significa, portanto, co-humanização. Nas palavras de Leonardo Boff, “os seres humanos não foram chamados [...] para serem lobos entre si, mas irmãos e irmãs”[43]. Ser mais humano: eis a vocação de cada homem e de cada mulher.







III – Alteridade interdita: ação ‘dia-bólica’

Leonardo Boff, em O despertar da águia, logo no início do livro, apresenta uma explicação dos termos sim-bólico e dia-bólico. Enquanto o primeiro significa “lançar as coisas de tal forma que elas permaneçam juntas”, o dia-bólico, ao contrário, “literalmente significa: lançar coisas para longe, de forma desagregada e sem direção; [...] É tudo o que desconcerta, desune, separa e opõe”[44]. No sim-bólico, a pluralidade se faz unidade, no dia-bólico se impõe a desunião, o afastamento.
Assim, dando início à reflexão sobre processos que impedem o encontro inter-humano e tolhem às pessoas desenvolverem a vocacionalidade humana de ser mais, podemos dizer que tais dinâmicas são dia-bólicas. Realidades que impedem um autêntico encontro eu-tu e que dividem as pessoas, subjugando-as numa relação de opressão, são, portanto, dia-bólicas.

1. O Discurso de uma Pretensa Neutralidade
Ernani Maria Fiori lembra que a educação é o “processo histórico no qual o homem se re-produz, produzindo seu mundo”[45]. Assim, a educação manifesta as características correspondentes a uma determinada concepção de humanidade e de mundo. Em Medo e ousadia, Paulo Freire dialogando com o educador norte-americano Ira Shor, diz o seguinte:
Sabemos que não é a educação que modela a sociedade mas, ao contrário, a sociedade é que modela a educação segundo os interesses dos que detêm o poder. Se é assim, não podemos esperar que a educação seja a alavanca da transformação destes últimos. Seria ingênuo demais pedir à classe dirigente no poder que pusesse em prática um tipo de educação que pode atuar contra ela.[46]
Por isso, segundo Freire, o argumento de uma pretensa neutralidade tanto na educação como em outros âmbitos da sociedade é falso. No ensaio O papel educativo das Igrejas na América Latina, publicado na obra Ação cultural para a liberdade e outros escritos, Freire discute a relação Igrejas e educação no contexto latino americano e afirma enfaticamente: “não podemos aceitar a neutralidade das Igrejas em face da história, assim como a neutralidade da educação”[47].
A suposta neutralidade, proclamada por ingênuos de diferentes matizes e pelos ‘espertos’ que escondem sua opção real, nada mais é que uma afirmação em favor daqueles que detêm o domínio sobre os menos favorecidos. É a ilusão de que através de discurso, obras humanitárias, assistencialismos seja possível mudar as consciências para depois transformar o mundo. Ilusão que consiste em pressupor “que é possível transformar o coração dos homens e das mulheres, deixando, contudo, virgens, intocadas, as estruturas sociais em que o coração não pode ter saúde[48].
Numa outra passagem de Medo e ousadia, Freire declara que, na perspectiva libertadora, o educador que se diz neutro, com a desculpa de estar respeitando o educando, está na verdade, desrespeitado-o. Segundo o professor Freire
A ideologia dominante marca sua presença na sala de aula, em parte tentando convencer o professor de que ele deve ser neutro, a fim de respeitar os alunos. Esse tipo de neutralidade é um falso respeito pelos estudantes. Ao contrário, quanto mais me calo sobre concordar ou não concordar, em respeito aos outros, mais estou deixando a ideologia dominante em paz![49]
É nesse discurso da pretensa neutralidade que se insere uma concepção educativa tradicional, caracterizada por Freire de bancária. Trata-se de uma prática educativa eminentemente a serviço de uma lógica excludente, como veremos no ponto seguinte.


2. A Educação Bancária: uma Escola de Antidialogicidade
A antidialogicidade é a principal marca da pedagogia bancária. Nessa dinâmica, não há como existir um autêntico encontro entre as pessoas.  É uma prática educativa que nega a dimensão da alteridade. A concepção bancária é uma educação tradicional, excludente, opressora, antidialógica, alienante, enfim, numa expressão de Leonardo Boff, dia-bólica.
Na educação tradicional, a relação entre educador e educando é estabelecida por uma linguagem eminentemente narrativa. O educador fala, disserta e o educando, docilmente, ouve. É uma linguagem que não consegue gerar vida. A educação dissertativa é vazia de significado, apenas sonoridade. Portando, diz Freire, não tem força transformadora. A palavra é propriedade de quem se pensa dono do saber: o educador. Ao educando, mantido em sua passividade por uma rígida disciplina, cabe receber inquestionavelmente, tudo aquilo que lhe é narrado. Nas palavras de Freire
A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em ‘vasilhas’, em recipientes a serem ‘enchidos’ pelo educador. Quanto mais vá ‘enchendo’ os recipientes com seus ‘depósitos’, tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem docilmente ‘encher’, tanto melhores educandos serão.[50]
Assim, na terminologia freireana, uma educação baseada numa prática meramente narrativa é bancária. De fato, como numa instituição financeira na qual se realiza depósitos, na educação bancária ocorre algo semelhante: “[...] a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante”[51].
O educador que assume a postura bancária não consegue ver a educação e o conhecimento como processos de busca. É um educador que se mantém numa rigidez tal que não consegue reconhecer no educando um sujeito capaz de produzir conhecimento. Ele, o educador, é o que sabe, enquanto o outro, o educando, é o que nada sabe. A educação bancária é, portanto, no olhar de Freire, uma pedagogia disseminadora da cultura do silêncio, na qual os educandos ‘aprendem’ a não dizer a própria palavra.
A educação bancária, como já assinalamos, é caracteristicamente antidialógica. É uma prática educacional que não consegue proporcionar um autêntico encontro inter-humano, pois não há diálogo, apenas monólogo. E como escreveu o professor Fiori, “o monólogo, enquanto isolamento, é a negação do homem; é fechamento da consciência, uma vez que consciência é abertura”[52].
Em diversas ocasiões, Freire reitera o caráter desumano da concepção antidialógica. É o que ele faz no capítulo quatro da Pedagogia do oprimido, onde apresenta algumas características que deixam claro a índole de quem assume tal perspectiva de vida. Os que defendem uma prática antidialógica têm o desejo de continuar dominando e, para isso, buscam conquistar, dividir as pessoas, manipular e invadir culturalmente.
A conquista revela a ânsia do dominador em querer subjugar o outro ao seu poder. A conquista reduz o outro a um mero objeto manipulável, retirando-lhe o direito de dizer a sua palavra.  E para conquistar, o opressor utiliza-se de inúmeros estratagemas que vão desde as mais explícitas as mais camufladas.
A antidialogicidade, enquanto característica inerente à ação opressora, é maquiada por pseudoconcepções de mundo que os oprimidos vão introjetando. E essa introjeção, que é conquista, acontece mediante propagandas muito bem organizadas e apresentadas, ou melhor, depositadas pelos chamados meios de comunicação de massa. Segundo Freire:
Já as elites dominadoras da velha Roma falavam na necessidade de dar ‘pão e circo’ às massas para conquistá-las, amaciando-as, com a intenção de assegurar a sua paz. As elites dominadoras de hoje, como as de todos os tempos, continuam precisando da conquista como uma espécie de ‘pecado original’, com ‘pão e circo’ ou sem eles. Os conteúdos e os métodos da conquista variam historicamente, o que não varia, enquanto houver elite dominadora, é esta ânsia necrófila de oprimir.[53]
Provocar a divisão do povo é outra característica da ação antidialógica. Conforme Freire, quanto mais dividido o povo estiver, mais fácil de dominá-lo. Ações que conduzem a qualquer tipo de organização, de associação, etc. são proclamadas como perigosas. No entanto, como normalmente ocorre, também a divisão é feita de forma camuflada. É o que acontece, como lembra Freire, quando lideranças são levadas, por ingenuidade, a uma visão focalista, isto é, parcial, dos problemas, dificultando, assim, uma visão mais global do que realmente está acontecendo. Escreve Freire:
Quanto mais se pulverize a totalidade de uma área em ‘comunidades locais’, nos trabalhos de ‘desenvolvimento de comunidade’, sem que estas comunidades sejam estudadas como totalidades em si, que são parcialidades de outra totalidade (área, região, etc.) que, por sua vez, é uma parcialidade de uma totalidade maior (o país, como parcialidade da totalidade continental), tanto mais se intensifica a alienação. E, quanto mais alienados, mais fácil de dividi-los e mantê-los divididos.[54]
A manipulação é a terceira característica que Freire associa a ação antidialógica. Através dessa estratégia os dominadores buscam falsear a realidade e, assim, conformar o povo a seus objetivos.  A manipulação encontra espaço, sobretudo, onde não há presença de uma consciência crítica. É o caso, lembra Freire, das regiões mais industrializadas do Brasil, em que a população gozando de alguns privilégios acaba introjetando mecanismos opressores. Há uma consciência anestesiada, que mantêm as pessoas imersas no desejo burguês do êxito pessoal.
Uma típica forma de manipulação se manifesta, conforme Paulo Freire, na ação de lideranças populistas. Mesmo em líderes ditos revolucionários, o populismo é um mecanismo que não respeita o povo como sujeito de sua história. Por isso, o líder populista acaba servido à lógica dominante.
Uma última característica da ação antidialógica, destacada por Freire, é a chamada invasão cultural. Trata-se de uma imposição de determinadas concepções de mundo circunscritas ao mundo opressor sobre o contexto dos oprimidos. Nosso autor denuncia que tal ação, feita de forma branda ou não, “é sempre uma violência ao ser da cultura invadida, que perde sua originalidade ou se vê ameaçado de perdê-la”[55].
O desejo da cultura invasora é de tomar conta dos dominados, mantendo-os sob um prisma ingênuo e alienante. Em outras palavras, é impedir que o oprimido possa pensar por si mesmo, tendo voz própria. Freire destaca que uma das táticas da cultura dominante é fazer o oprimido imbuir-se da idéia de que sua cultura é inferior àquela vinda de fora.
Um importante aspecto que Freire comenta no âmbito da invasão cultural, mas que perpassa a concepção antidialógica como um todo, é a maneira como a dominação vai se instalando. Conforme Freire, a invasão cultural nem sempre se manifesta de forma explícita. Em muitas situações, agentes manipuladores são na verdade, instrumentos daqueles que de fato mantêm o poder. Em outras palavras, as instituições, que não são neutras, tendem a expressar o contexto ou a estrutura social circundante.
Assim, as relações familiares, entre pais e filhos, acabam, de modo geral, refletindo as características da sociedade circundante. Se no contexto mais geral existe a predominância de relações autoritárias, rígidas, dominadoras, estas acabam conseqüentemente, impregnando os lares. “Quanto mais se desenvolvem estas relações de feição autoritária entre pais e filhos, tanto mais vão os filhos, na sua infância, introjetando a autoridade paterna”[56].
Seguindo a reflexão, Freire dirá que essa maneira de encarar o mundo, construída no seio familiar, prolongar-se-á na experiência da escola. Num sistema educacional onde também predomina relações autoritárias e dominadoras, os educandos acabam solidificando as percepções e as atitudes que foram sendo absorvidas desde sua infância. E o resultado desse processo educativo, ou melhor, deseducativo, é a formação de um sujeito que acaba assumindo atitudes antidialógicas.

IV – Alteridade e libertação

Martin Buber (1878-1965), filósofo de tradição judaica, dizia que uma educação fomentadora de uma cultura comunitária requer uma autêntica relação eu-tu. Relação esta que perpassa as diversas interações que se estabelecem no ambiente educativo: educador-educando, educador-educador, educando-educando, feminino-masculino, escola-família etc. Assim, para este pensador, a escola deveria ser um verdadeiro “ninho de comunitariedade”[57]. Conforme Buber “educação é relação, capacitação. Por esse termo relação entendo relação direta, isenta de propósitos, cujo fim é ela mesma, isto é, a capacidade para tal relação com as pessoas com as quais se convive”[58].
É nessa perspectiva, de uma educação promotora de um autêntico encontro humano, que a pedagogia do oprimido se insere.
1.  O Encontro do Inter-Humano como Lugar da Pronúncia do Mundo
Tem razão o professor Miguel Arroyo quando diz que “‘A pedagogia do oprimido’ não é uma listagem de métodos de como ensinar aos oprimidos e excluídos. [...] É a pedagogia que os próprios oprimidos aprendem e põem em prática para recuperar a humanidade que lhes é roubada [...]”[59]. Por isso, nas palavras de Freire “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mudo”[60].
É na pronúncia da palavra que as pessoas vão pronunciando sua humanidade. Como fenômeno humano, o diálogo é palavra. Palavra que é práxis, isto é, ação e reflexão. Por isso, diz Freire que “não há palavra verdadeira que não seja práxis. Daí que dizer a palavra verdadeira seja transformar o mundo”[61]. Nesta dialogicidade, na ação e reflexão, o humano vai se constituindo e modificando o mundo.
Segundo Ernani Maria Fiori, na mesma perspectiva de Freire, dirá que ao contrário do monólogo que isola as pessoas e as despersonaliza, no diálogo o ser humano vai ao mesmo tempo humanizando o mundo e se humanizando. Diz Fiori:
O diálogo fenomeniza e historiciza a essencial intersubjetividade humana; ele é relacional e, nele, ninguém tem iniciativa absoluta. Os dialogantes ‘admiram’ um mesmo mundo; afastam-se dele e com ele coincidem; nele põem-se e opõem-se. [...] O diálogo não é um produto histórico, é a própria historicização. É ele, pois, o movimento constitutivo da consciência que, abrindo-se para a infinitude, vence intencionalmente as fronteiras da finitude e, incessantemente, busca reencontrar-se além de si mesma. Consciência do mundo, busca-se ela a si mesma num mundo que é comum; porque é comum esse mundo, buscar-se a si mesma é comunicar-se com o outro.[62]
A pronúncia da palavra verdadeira que, segundo Freire, é trabalho, é práxis, é transformação do mundo, não pode ser privilégio de algumas pessoas. A palavra autêntica não pode ser pronunciada no isolamento, nem ser proclamada discursivamente para os outros. Portanto, é no diálogo com as outras pessoas, mediatizadas pelo mundo, numa interação que não se fecha no eu-tu, num puro comunitarismo, que a palavra se manifesta autenticamente.
No livro Medo e ousadia, Freire diz que o diálogo não é técnica nem tática para conseguir determinados objetivos, como, por exemplo, conquistar a atenção do educando. O diálogo é uma postura de vida inerente as pessoas que lutam por um processo de humanização. Assim, escreve Paulo Freire:
[...] que deveríamos entender o ‘diálogo’ não como uma técnica apenas que podemos usar para conseguir obter alguns resultados. Também não podemos, não devemos, entender o diálogo como uma tática que usamos para fazer dos alunos nossos amigos. Isto faria do diálogo, uma técnica para a manipulação, em vez de iluminação. Ao contrário, o diálogo deve ser entendido como algo que faz parte da própria natureza histórica dos seres humanos. [...] o diálogo é uma espécie de postura necessária, na medida em que os seres humanos se transformam cada vez mais em seres criticamente comunicativos.[63]
Na Pedagogia do oprimido Freire aponta algumas características que estão intimamente implicadas ao processo dialógico. São características sem as quais não seria possível um autêntico diálogo. Em diversos escritos, como Medo e ousadia, Pedagogia da autonomia, Professora sim, tia não, Freire sempre retoma esses elementos constitutivos do diálogo. Assim, tendo a Pedagogia do oprimido como base e as demais obras como complementaridade, acompanhemos Paulo Freire na descrição desses pressupostos ou aspectos que permeiam o paradigma da dialogicidade.
O primeiro fundamento da dialogicidade que Freire apresenta, na Pedagogia do oprimido, é o amor. Sem um sincero amor ao mundo e à humanidade “não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação”[64]. O amor enquanto fundamento do diálogo, continua nosso educador, também se constitui no diálogo. Assim, amor e diálogo estão em estreita correlação. Numa relação de dominação e de ausência do diálogo não há autêntico amor, mas, segundo Freire, “patologia do amor: sadismo em quem domina; masoquismo nos dominados. Amor não”[65].
Confirmando a intuição de Freire, que aponta para o amor como uma condição da dialogicidade e, portanto, do processo de humanização, é ilustrativo as afirmações de Humberto Maturana, pensador chileno, feitas a partir de um prisma biológico, em A antologia da realidade, a respeito do processo de humanização. Diz ele que o ser humano surge com a linguagem. E, continua, o que torna possível essa interação humana pela linguagem é o amor. Assim, “é o modo de vida hominídeo que torna possível a linguagem, e é o amor como a emoção que constitui o espaço de ações em que se dá o modo de viver hominídeo, a emoção central na história evolutiva que nos dá origem”[66].
Retornando a Freire, um importante  aspecto imbricado ao amor é a dimensão da coragem. Em Professora sim, tia não, nosso educador lembra que amorosidade aos educandos e ao próprio ato de ensinar não significa docilidade, isto é, ingenuidade. Um verdadeiro amor não tem medo de encarar as situações de injustiça. Como diz Freire, “é preciso [...] um amor brigão de quem se afirma no direito ou no dever de ter o direito de lutar, de denunciar, de anunciar”[67].
O diálogo, enquanto encontro do homem com o outro homem para pronunciar o mundo, não pode ser um ato arrogante. Por isso, Freire fala na humildade como uma outra dimensão imprescindível a um sincero diálogo.
Paulo Freire escreve que
A auto-suficiência é incompatível com o diálogo. Os homens que não têm humildade ou a perdem, não podem aproximar-se do povo. Não podem ser seus companheiros de pronúncia do mundo. Se alguém não é capaz de sentir-se e saber-se tão homem quanto os outros, é que lhe falta ainda muito que caminhar, para chegar ao lugar de encontro com eles. Neste lugar de encontro, não há ignorantes absolutos: há homens que, em comunhão, buscam saber mais.[68]
Falando das qualidades indispensáveis ao educador e educadora progressistas, no livro Professora sim, tia não, Paulo Freire escreve que “a humildade nos ajuda a reconhecer esta coisa óbvia: ninguém sabe tudo; ninguém ignora tudo. Todos sabemos algo; todos ignoramos algo”[69]. Da mesma forma, na Pedagogia da autonomia¸ Freire afirma que “o meu respeito de professor à pessoa do educando, à sua curiosidade, à sua timidez, que não devo agravar com procedimentos inibidores exige de mim o cultivo da humildade e da tolerância”[70].
Outro pressuposto, apontado por Freire na Pedagogia do oprimido, para que se estabeleça um autêntico diálogo, é a sincera fé na humanidade. Fé que significa crer na vocacionalidade de cada homem e de cada mulher em ser mais.  “A fé nos homens é um dado a priori do diálogo. Por isto, existe antes mesmo de que ele se instale. O homem dialógico tem fé nos homens antes de encontra-se frente a frente com eles”[71].
Entretanto, a fé freireana, como a tolerância que se falou acima, não significa ingenuidade. O homem dialógico, em sua criticidade, tem consciência da capacidade humana de poder fazer, criar, enfim, transformar. Mas também tem consciência que, em situação de alienação, a capacidade humana pode ser tolhida.
Assim, “desconfiar dos homens oprimidos, não é, propriamente, desconfiar deles enquanto homens, mas desconfiar do opressor ‘hospedado’ neles”[72]. Atitude democrática, para Freire, não é deixar os educados à própria sorte.
Na relação dialógica se estabelece um clima de confiança, que é imprescindível para o processo de transformação. Na dialogicidade, os sujeitos, que se encontram numa relação de confiança e de colaboração, pronunciam o mundo. E nesta pronúncia, transformam o mundo.
Falando da confiança, Freire diz que ela é conseqüência do próprio processo dialógico. “A confiança vai fazendo os sujeitos dialógicos cada vez mais companheiros na pronúncia do mundo”[73]. E se isto não ocorrer, é sinal de que as condições a priori da dialogicidade, isto é, o amor, a humildade e a fé no homem, falharam. Ou melhor, não aconteceram de fato.
Um falso amor, uma falsa humildade, uma debilitada fé nos homens não podem gerar confiança. A confiança implica o testemunho que um sujeito dá aos outros de suas reais e concretas intenções [...]. Dizer uma coisa e fazer outra, não levando a palavra a sério, não pode ser estímulo à confiança. Falar, por exemplo, em democracia e silenciar o povo é uma farsa. Falar em humanismo e negar os homens é uma mentira.[74]
Já a esperança, outra importante característica que sem a qual, segundo Freire, a cultura dialógica ficaria comprometida, tem haver com a própria incompletude da condição humana. A esperança mantém viva a força que leva os homens a uma eterna busca da completude, da perfeição. É busca que não se faz no isolamento, mas na comunicação entre os homens.
Ao contrário da esperança, que leva ao diálogo inter-humano, está a desespero. Este, que é uma espécie de silêncio, demanda recusa do mundo e, por isso, é fuga. Entretanto, para quem assume o paradigma da libertação, mesmo diante de dificuldades aparentemente intransponíveis, não deixa de lutar pela humanização justamente porque é um homem de esperança.
Esperança, diz Freire, que não significa cruzar os braços e simplesmente esperar para ver o que acontece. “Movo-me na esperança enquanto luto e, se luto com esperança, espero”[75]. Assim, conclui Freire, “se o diálogo é o encontro dos homens para ser mais, não pode fazer-se na desesperança. Se os sujeitos do diálogo nada esperam do seu quefazer, já não pode haver diálogo. O seu encontro é vazio e estéril. É burocrático e fastidioso”[76].
Um outro traço que não pode estar ausente para que haja um verdadeiro diálogo é um pensar verdadeiro dos sujeitos dialogantes. É um pensar que percebe a realidade de forma crítica e, por isso, opõe-se ao pensar ingênuo. Não aceita a dicotomia entre o mundo e o humano. Tampouco adota uma visão estática da realidade, pois percebe o mundo circundante e a própria condição humana como realidades processuais que estão em constante transformação. Transformação esta que se dá pela práxis humana.
Na Pedagogia da autonomia, Freire afirma que o pensar verdadeiro, isto é, a reflexão crítica sobre a prática, é exigência do processo educativo. O espontaneísmo conduz à ingenuidade. Nas palavras do nosso educador
A prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer. O saber que é prática docente espontânea ou quase espontânea, ‘desarmada’, indiscutivelmente produz é um saber ingênuo, um saber de experiência feito, a que falta a rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito.[77]

2. O Diálogo Começa na Busca do Conteúdo Programático
Para a educação libertadora, o processo dialógico não começa “quando educador-educando se encontra com os educando-educadores em uma situação pedagógica”[78]. Segundo Freire, a dialogicidade tem início desde que o educador-educando começa a se perguntar sobre o que vai dialogar com os educando-educadores. Ou seja, a preocupação pelo conteúdo do diálogo é a inquietação que diz respeito ao conteúdo programático da educação.
A aproximação do educador ao educando não tem a pretensão de levar uma mensagem ‘salvadora’, nem a pretensão de impor uma determinada visão de mundo. Em atitude de diálogo, o educador libertador, partindo das situações concretas e da realidade existencial, busca problematizar com os educandos os desafios que lhes dizem respeito. Desafios que exigem respostas tanto ao nível reflexivo como ao nível da ação.
Na concepção libertadora, as relações homens-mundo, os temas – que Freire acrescenta a expressão ‘geradores’ – e o conteúdo programático não são estabelecidos como se fossem discursos a serem proclamados para o povo. Mas, partindo da realidade mediatizadora, educador e educando de forma dialógica estabelecem a caminhada do processo educativo.
Na Pedagogia do oprimido, Freire descreve com detalhes todo o processo da investigação dos temas geradores (universo temático), a partir dos quais se desencadeia o processo de conhecimento. Não obstante à riqueza dos aspectos envolvidos na pesquisa, apresentados por Freire, gostaríamos de apenas destacar o sentido desse processo investigatório. Acompanhemos, nas palavras freireanas, o significado que o processo de investigação tem para a educação libertadora:
Esta investigação implica, necessariamente, uma metodologia que não pode contradizer a dialogicidade da educação libertadora. Daí que seja igualmente dialógica. Daí que, conscientizadora também, proporcione, ao mesmo tempo, a apreensão dos ‘temas geradores’ e a tomada de consciência dos indivíduos em torno dos mesmos. [...] O que se pretende investigar, realmente, não são os homens, como se fossem peças anatômicas, mas o seu pensamento-linguagem referido à realidade, os níveis de sua percepção desta realidade, a sua visão de mundo, em que se encontram envolvidos seus ‘temas geradores’.[79]
No entanto, é importante lembrar que o processo democrático de Freire não isenta a responsabilidade do educador e da educadora. Nesse sentido, em Medo e ousadia, escreve o autor:
O oposto de manipulação não é laissez-faire, nem a negação da responsabilidade que o professor tem na direção da educação. O professor libertador nem manipula, nem lava as mãos da responsabilidade que tem com os alunos. Assume um papel diretivo necessário para educar. Essa diretividade não é uma posição de comando, de ‘faça isso’ ou ‘faça aquilo’, mas uma postura para dirigir um estudo sério sobre algum objeto, pelo qual os alunos reflitam sobre a intimidade de existência do objeto. Chamo esta posição de radical democrática, porque ela almeja a diretividade e a liberdade ao mesmo tempo, sem nenhum autoritarismo do professor e sem licenciosidade dos alunos.[80]
Desencadear um processo libertador é ajudar as pessoas a se darem conta da realidade de forma crítica. E para isso, segundo Freire, é imprescindível uma metodologia problematizadora, onde o povo (educando) possa começar a perceber seu mundo de forma diferente.


3. Humanização: o Encontro Inter-Humano na Dialogicidade

Sobre a dimensão dialógica, na perspectiva freireana, muito se pode dizer. Afinal, toda a proposta de Paulo Freire é perpassada pela dialogicidade. Estamos conscientes de que, à medida que fomos destacando alguns elementos da pedagogia de Freire, particularmente expressos na Pedagogia do oprimido, outros aspectos acabaram ficando de fora. No entanto, o diálogo, não é apenas mais um aspecto da proposta de Freire. Poderíamos dizer que a dimensão dialógica constitui a própria identidade da pedagogia freireana. Assim, encontrando-nos com o pensamento e obra freireana, o que salta aos olhos é o caráter dialógico da pedagogia da libertação.
Para Freire, o diálogo como processo pedagógico, deve estar presente em todos os passos da libertação. E a libertação, enquanto humanização, é uma constante resposta de cada homem e de cada mulher à vocacionalidade de ser mais humano. Como processo dinâmico e contínuo, a libertação não é um ponto de chegada.  E nesse processo não há como prescindir do diálogo. O caminho da libertação passa por uma pedagogia que, através da intersubjetividade, busca problematizar as questões circundantes e não por uma pedagogia ‘bancária’.
A libertação é uma tarefa que exige persistência e perspicácia, pois não acontece de um momento para o outro. É uma conquista que se dá aos poucos e à medida que houver uma tomada de consciência. O respeito pelo ritmo de cada pessoa bem como uma sensibilidade pelo processo histórico são princípios essenciais para um verdadeiro processo de humanização. E o caminho da humanização, na perspectiva freireana, não é outro senão colocar-se em comunhão com o povo.
Para Freire, “o sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na história”[81]. Em outras palavras, o processo de humanização, que é libertação, é um caminho que se faz na alteridade.

conclusão
Paulo Freire foi um educador comprometido com a defesa do direito às pessoas, particularmente as mais espoliadas, para que pudessem ter uma vida digna. A partir dessa sua opção, em comunhão com o povo, Freire buscou descortinar as situações, as quais podemos adjetivar de dia-bólicas, em que a vocação humana do ser mais é negada.
Freire não se limitou tão somente a denúncia das realidades anti-humanas. Assim, ao mesmo tempo em que apontava para as situações de exclusão, nosso educador foi se comprometendo na construção de uma perspectiva transformadora. Foi na esperança e no sonho possível de uma outra humanidade que Freire foi assumindo com as pessoas, particularmente às mais “esfarrapadas”, a pedagogia da libertação. Uma proposta alicerçada, indubitavelmente no paradigma da dialogicidade. Por isso, a pedagogia do oprimido é também uma pedagogia da alteridade.
É na comunhão e no encontro inter-humano que a libertação, como processo de humanização, vai sendo construída. Assim, num contexto de mundo pautado na ânsia do ter e do lucro, onde o autêntico encontro inter-humano é relegado, é que a pedagogia da libertação testemunha a concretização, que vai se fazendo passo a passo, do sonho possível de um outro mundo e de uma outra humanidade: a civilização do amor.

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[1] Alfonso García RUBIO, Unidade na pluralidade, p. 375.
[2] Zygmunt BAUMAN. O mal-estar da pós-modernidade, p. 26.
[3] Hugo ASSMANN; Jung MO SUNG. Competência e sensibilidade solidária, p. 09.
[4] Balduíno Antonio ANDREOLA. Pedagogia do oprimido: um projeto coletivo, p. 43.

[5] Robert MCCHESNEY, Introdução. In. Noam CHOMSK. O lucro ou as pessoas?, p. 11-12.
[6] Herbert Marcuse, Eros e civilização, p. 13-14.
[7] Erich Fromm, Ter ou ser?, p. 88.
[8] Leonardo Boff, Ética da vida, p. 136.
[9] Hugo ASSMANN, Crítica à lógica da exclusão, p. 19.
[10] Zygmunt Baumam, O mal-estar da pós-modernidade, p. 24.
[11] Fritjof CAPRA, O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente, p. 19.
[12] Leonardo BOFF, Saber cuidar, p. 11.
[13] Alfonso García RUBIO, Unidade na pluralidade, p. 375.
[14] Leonardo BOFF, Crise: oportunidade de crescimento, p. 13.
[15] Paulo FREIRE, Pedagogia do oprimido, p. 17.
[16] Miguel G. ARROYO, Ofício de mestre, p. 247-248.
[17] Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, p. 23.
[18] Ernani Maria FIORI, Aprender a dizer a sua palavra, p. 52.
[19] Paulo FREIRE, Pedagogia da esperança, p. 18.
[20] Henrique DUSSEL, Ética da libertação, p. 443.
[21] Ibidem, p. 443.
[22] Ana Maria Araújo FREIRE, Apresentação, p. 11.
[23] Miguel G Arroyo, Paulo Freire em tempos de exclusão, p. 169.
[24] Ana Maria Araújo FREIRE, Apresentação, p. 14.
[25] Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, p. 25.
[26] Paulo Freire, Pedagogia da esperança, p. 66-68.
[27] Paulo Freire e Ira SHOR, Medo e ousadia: o cotidiano do professor, p. 51.
[28] Ernani Maria FIORI, Aprender a dizer a sua palavra, p. 61.
[29] Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, p, 30.
[30] Ibidem, p. 30
[31] Ibidem, p. 29.
[32] Paulo FREIRE, Pedagogia da esperança, p. 99.
[33] Paulo FREIRE, Pedagogia do oprimido, p. 30.
[34] Ibidem, p. 25.
[35] Paulo FREIRE, Pedagogia da esperança, p. 100.
[36] Paulo Freire, Pedagogia da autonomia, p. 85.
[37] Henry A. GIROUX, Cultura, poder e transformação na obra de Paulo Freire, p. 146.
[38] Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, p. 90.
[39] Ibidem, p. 90.
[40] Ibidem, p. 91.
[41] Ibidem, p. 99.
[42] Ernani Maria Fiori, Educação Libertadora, p. 83.
[43] Leonardo Boff, O despertar da águia, p. 107.
[44] Leonardo BOFF, O despertar da águia, p. 11-12.
[45] Ernani Maria Fiori, Conscientização e educação, p. 74.
[46] Paulo Freire; Ira SHOR, Medo e ousadia: o cotidiano do professor, p. 49.
[47] Paulo FREIRE.  Ação cultural para a liberdade e outros escritos, p. 123.
[48] Ibidem, p. 124.
[49] Paulo Freire; Ira SHOR, Medo e ousadia: o cotidiano do professor, p. 206.
[50] Paulo FREIRE, Pedagogia do oprimido, p. 58.
[51] Ibidem, p. 58.
[52] Ernani Maria FIORI, Aprender a dizer a sua palavra, p. 59.
[53] Paulo FREIRE, Pedagogia do oprimido, p. 138.
[54] Paulo FREIRE, Pedagogia do oprimido, p. 139.
[55] Ibidem, p. 149.
[56] Paulo FREIRE, Pedagogia do oprimido, p. 152.
[57] Marcelo DASCAL e Oscar ZIMMERMANN, Introdução, p. 29.
[58] Martin BUBER, Sobre comunidade, p. 93.
[59] Miguel G ARROYO, Ofício de mestre, p. 247.
[60] Paulo FREIRE, Pedagogia do oprimido, p. 68.
[61] Paulo FREIRE, Pedagogia do oprimido, p, 77.
[62] Ernani Maria Fiori, Aprender a dizer sua palavra, p. 59.
[63] Paulo Freire; Ira SHOR, Medo e ousadia: o cotidiano do professor, p. 122-123.
[64] Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, p. 79.
[65] Ibidem, p. 80.
[66] Humberto MATURANA, A ontologia da realidade, p. 174.
[67] Paulo Freire, Professora sim, tia não, p. 57.
[68] Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, p. 81.
[69] Paulo Freire, Professora sim, tia não, p. 57.
[70] Paulo FREIRE, Pedagogia da autonomia, p. 74.
[71] Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, p. 81.
[72] Ibidem, p. 168.
[73] Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, p. 82.
[74] Ibidem, p. 82
[75] Ibidem, p. 82.
[76] Ibidem, p. 82.
[77] Paulo FREIRE, Pedagogia da autonomia, p. 43.
[78] Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, p. 83.
[79] Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, p. 89.
[80] Paulo Freire; Ira SHOR, Medo e ousadia: o cotidiano do professor, p. 203.
[81] Paulo FREIRE, Pedagogia da autonomia, p. 43.

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