O LIVRE-MERCADO COMO RELIGIÃO




É preciso contrapor os direitos concretos à vida a esta ideologia ilusória da vida que na realidade não é mais do que uma ideologia da morte. A lógica do capital é a morte, e a mística do capital é a mística da morte. Por trás da lógica do mercado total aparece a mesma mística da morte que anteriormente esteve por trás da lógica da guerra total dos estados fascistas. A vida não pode ser afirmada a não ser concebendo-a e vivendo-a a partir do que é a sua base real: os direitos concretos à vida de todos os seres humanos [a natureza incluída].[1]

Introdução

Denso em seu conteúdo e eminentemente atual, O capitalismo como religião é um pequeno texto de Walter Benjamin, escrito em 1921. Efetivamente, Benjamin desvela o caráter religioso que subsiste na dinâmica capitalista. O capitalismo é uma religião que “está a serviço da resolução das mesmas preocupações, aflições e inquietações a que outrora as assim chamadas religiões quiseram oferecer resposta.”[2] Porém, em sua resolução, a religião capitalista é um caminho que conduz a humanidade à “casa do desespero na solidão absoluta”.[3]
Como parasita do cristianismo, o capitalismo é a celebração de um culto que não tem trégua e nem piedade. Para ele, não há um dia sagrado, por que todos os dias devem ser santificados ao seu culto. Então, faltar à sua festa, com toda “a pompa sacral”, é assumir a culpa de quem não é apto para ingressar em seu santuário. Por fim, enquanto das antigas religiões retira-se toda esperança na transcendência de Deus, proclamando-se seu esfacelamento (Nietzsche), com o capitalismo, ‘deus’ não está morto. Entretanto, é um ‘deus’ feito à imagem impressa nos ornamentos das cédulas bancárias, diante da qual, desde que se prostre, o ser humano é um ser convertido em super-homem que pode tudo. “Dessa religião é que seu Deus precisa ser ocultado e só pode ser invocado no zênite de sua culpabilização. O culto é celebrado diante de uma divindade imatura; toda representação dela e toda ideia sobre ela viola o mistério de sua natureza”.[4]
O culto ao capital é, em outras palavras, a “idolatria do mercado”, na expressão de Hinkelammert e Assmann em livro homônimo. “Os deuses econômicos são deuses óbvios. Tão óbvios no seu caráter de deuses reais e verdadeiros, que nem nos ocorre chamá-los de falsos. Sua identidade se ocultou no funcionamento da economia”.[5] Pois, “hoje todo mundo está ameaçado de ser sacrificado em nome da lei da história, que se formula como lei do mercado. É necessária a afirmação da liberdade para impor-se a esta lei e assegurar a vida humana, para que não seja sacrificada”.[6] Por isso, como um antídoto, “denunciar os deuses demasiado óbvios, falar de idolatria no terreno da economia (e em outros terrenos) é desfazer a sua obviedade”.[7] Para tanto, a reivindicação da reflexão teológica, a realidade da fé refletida no interior e a partir da economia, abre uma perspectiva de libertação. Ou seja, “para poder reivindicar a liberdade necessita-se de fé”.[8] É a fé no Deus da vida, o horizonte que interpela pela condição das pessoas, especialmente dos empobrecidos que têm suas vidas destruídas pelos deuses do mercado.
Na esteira de Benjamin e, principalmente, perscrutando o pensamento hinkelammertiano, neste capítulo, analiso o caráter religioso e as crenças que se ocultam na economia contemporânea. O itinerário segue o indicativo de Hinkelammert, segundo o qual “a promessa da salvação/boa notícia do liberalismo econômico” tem quatro eixos: “a abundância (satisfação dos desejos); a promessa de um crescimento infinito; a unidade da humanidade mediante o mercado”; e, por fim, “a aceitação da destruição do ser humano e da natureza, mas confiando nas forças salvadoras do mercado sem fim, garante o caminho para superar a própria destruição.”[9] O conteúdo dessa promessa é o fio condutor da análise que prossegue.

1 Economia de livre-mercado e globalização: marcos da crise civilizatória

Pós-modernidade (Lyotard), modernidade líquida (Bauman), era do vazio (Lipovetsky), ou simplesmente uma nova fase da modernidade, com todos os seus mal-estares e expectativas, o nosso tempo está sendo demarcado por profundas mudanças. Desde as últimas décadas do século XX, de forma mais acentuada, está em curso uma mudança dramática no curso da humanidade. A defesa da ética primeira que demanda o sentido de justiça e a responsabilidade pelo próximo, não é defesa de uma ideologia, uma simples bandeira política. Mas é a incondicional defesa do Outro que tem sua vida posta em jogo pelas dinâmicas que promovem injustiça e morte. Em palavras levinasianas, significa “temor e responsabilidade pela morte do outro [...]”.[11] Como decorrência, não há como relativizar as situações que geram opressão e morte, tal como o faz Stiglitz, quando pretende celebrar os benefícios da globalização:
Graças à globalização, a expectativa de vida em todo mundo aumentou bastante, e o padrão de vida em todo mundo melhorou muito. As pessoas no Ocidente talvez considerem os cargos de baixa remuneração da Nike uma exploração, mas para muitos habitantes de país em desenvolvimento, trabalhar numa fábrica é uma opção bem mais atraente que permanecer preso a uma fazenda plantando arroz [na Ásia].[12]

Ora, seja ‘numa fazenda plantando arroz’ seja nas ‘subsidiárias da Nike’, a dinâmica é a mesma. Atualizando para esse contexto, ainda são apropriadas as palavras de Marx, para o qual, na relação capitalista, “o escravo, o servo e o trabalhador assalariado, todos recebem uma certa quantidade de alimentos que o permitem existir como escravos, servos e trabalhadores assalariados.”[13] Sob uma similar opção “bem mais atraente”, referida por Stiglitz, em 2013, na cidade de Dacka (Bangladesh),  ocorreram desabamentos de prédios onde funcionavam fábricas fornecedoras de tecidos para diversas empresas que tem suas cedes no Ocidente (Walmart, Primark...). Além de matar centenas de trabalhadores, as condições desses prédios revelaram o descumprimento com normas básicas de segurança de trabalho, bem como a lógica de exploração e de escravidão que ainda persiste. Isso tudo sob o patrocínio ou, no mínimo, a vista grossa de empresas que buscam instalar suas fábricas em regiões onde a mão de obra é mais barata.[14] Ou seja, em lugares onde o trabalhador assalariado recebe uma ‘ração diária’ – um salário mínimo – não mais que o suficiente para sobreviver e manter a capacidade necessária – a força de trabalho – para continuar produzindo a riqueza alheia. Daí que a análise de Marx continua atual:
A transformação capitalista do processo de produção aparece a um só tempo como martirológio dos produtores, o meio de trabalho como meio de subjugação, exploração e empobrecimento do trabalhador [...]. E todo o progresso da agricultura capitalista é um progresso na arte de saquear não só o trabalhador, mas também o solo [...].[15]
O autor de O capital foi contundente ao explicitar a exploração e a perspectiva destrutiva da maquinaria capitalista, trazendo à tona inclusive a apropriação do trabalho feminino e infantil, com prolongadas jornadas de trabalho, em condições insalubres. “Já mencionamos a deterioração física das crianças e dos adolescentes, bem como das trabalhadoras adultas, que a maquinaria submete à exploração do capital [...]”.[16] Não obstante ao contexto de O capital, trata-se de uma crítica válida para a atualidade, tendo em conta que em diversas partes do mundo seguem em curso as realidades de exploração do trabalho infantil e precarização do trabalho adulto.
Tenha-se presente inclusive as dinâmicas escravagistas e de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, em que as mulheres são as principais vítimas. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), “o trabalho forçado está presente, de alguma forma, em todos os continentes, em quase todos os países e em toda espécie de economia. Há casos persistentes do que pode ser chamado de formas ‘tradicionais’ de trabalho forçado”.[17] Nas fábricas de vestuários do Bangladesh, nas indústrias de tapetes da Índia, nas olarias e indústrias chinesas, nas pedreiras de Serra Leoa, nas carvoarias e sisais brasileiros..., os cenários são muito parecidos. E, nesse contexto, conforme dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), atualmente, cerca de 150 milhões de crianças de 5 a 14 anos estão submetidas ao trabalho infantil e afastadas das escolas.[18]
Em parte, voltando ao texto de Stiglitz, pode ser verdade que a “abertura do comércio internacional ajudou vários países a crescer muito mais rapidamente do que teriam crescido sem essa abertura” e, que “as exportações conduziram a um crescimento que é a peça central da política industrial que enriqueceu grande parte da Ásia e deu a milhões de indivíduos condições de vida muito mais confortáveis”.[19] Porém, mesmo reconhecendo malefícios ligados à globalização econômica, Stiglitz relega o humano e a natureza para planos secundários e subservientes. Como consequência, relativiza-se o escândalo da pobreza que implica a espoliação do humano e a destruição do meio ambiente. Por isso, celebrar a globalização, relativizando as situações de exploração decorrentes, é o mesmo que celebrar, na denúncia de Lévinas, “os mortos que ficaram sem sepultura nas guerras e nos campos de extermínio”.[20] É celebrar, no verso de Renato Russo, “a estupidez humana”.[21]
Com Marx, entende-se que “é tendência do capital tanto tornar o trabalho humano (relativamente) supérfluo como pressionar simultaneamente o trabalho de maneira desmedida”.[22] O humano, então, é reduzido à condição de uma peça na “máquina da liberdade”, como quer David Friedman ao defender um “capitalismo radical”.[23] Nessa dinâmica, suplanta-se a centralidade da vida humana e da natureza, dando lugar ao que Hinkelammert chama de ‘mercadocentrismo’ e ‘capitalcentrismo’. Ou seja, “não obstante, aquilo que na tradição ocidental aparece como antropocentrismo não coloca o homem no centro do pensamento sobre si mesmo e sobre a natureza. O ser humano é substituído por abstrações, em especial pelo mercado e pelo capital”.[24] Destarte, “o Ocidente se despediu do universalismo ético e de suas responsabilidades pelos outros. Não tem nada a ver com eles. A ‘Realpolitik’ decide como serão tratados: matar, torturar, desaparecer [...].”[25] Quando o sentido do humano da vida é deslocado, como ocorre no âmbito da economia contemporânea, emerge uma realidade inumana, uma economia sem rosto humano.
Para Amartya Sen, “a natureza da economia moderna foi substancialmente empobrecida pelo distanciamento crescente entre economia e ética”.[26] Esse distanciamento está ligado ao próprio processo de construção da concepção de sociedade moderna. O que está em crise atualmente é o próprio modelo de civilização ocidental inaugurado a partir de 1492, quando, segundo Morin e Kern, as nações do Oeste europeu (Inglaterra, Espanha, Portugal, França) “irão se lançar à conquista do Globo e, através da aventura, da guerra, da morte, suscitar a era planetária”.[27] Trata-se, segundo esses autores, da “idade de ferro planetária, na qual estamos ainda”, que “se inaugura e se desenvolve na e através da violência, da destruição, da escravidão, da exploração feroz das Américas e da África”.[28]
As grandes viagens protagonizadas por Cristóvão Colombo, Américo Vespúcio, Vasco da Gama, Magalhães..., certamente, implicaram na subversão das velhas concepções de mundo até então tidas como seguras. Desse modo, “a Europa deve reconhecer a pluralidade dos mundos humanos e a provincialidade da área judaico-islamo-cristã. Assim como a Terra não é o centro do cosmos, e Europa não é o centro do mundo”.[29] Em certa medida, a revolução copernicana sinalizou essa nova concepção de mundo. Porém, essa perspectiva de visão planetária permaneceu latente e abafada. Ela não revolucionou verdadeiramente o mundo onde ela surgiu.
É pertinente considerar, conforme Ribeiro, que “o processo civilizatório, acionado pela revolução tecnológica que possibilitou a navegação oceânica, transfigurou as nações ibéricas, estruturando-as como impérios mercantis salvacionistas”.[30]A pluralidade do mundo, então, foi reduzida à condição de um quintal a ser explorado por esses impérios. O velho mundo oeste-europeu “irá esquecer sua provincialidade ao instalar seu reino sobre o planeta; irá esquecer a provincialidade da Terra ao se convencer de que a ciência e a técnica farão dele o senhor do mundo”.[31]
Certo, a difusão mundial do modelo do Estado-nação, que também se forjou a partir do ‘velho mundo’, “irá se tornar um instrumento de libertação face aos dominadores europeus, um meio de salvaguardar as identidades ameaçadas pela modernidade ocidental, ao mesmo tempo que um meio de apropriar das armas e dos meios dessa modernidade”.[32] A partir dessa contradição é que se deve interpretar “os múltiplos processos de mundialização (demográficos, econômicos, técnicos, ideológicos, etc.) [que] são interferentes, tumultuosos, conflituosos”.[33]
No âmbito desse modelo de mundialização, desenvolve-se também a dinâmica econômica. Isso significa considerar, com Kern e Morin, que “a mundialidade do mercado é um mundialidade de concorrências e conflitos. Está ligada à expansão mundial do capitalismo e da técnica, à mundialização dos conflitos entre imperialismos, à mundialização da política [...]”.[34] A partir da revolução industrial, em que “a riqueza, o poder burguês se desenvolveram com base na assustadora miséria do século XIX: jornadas de trabalho ampliadas, salários reduzidos [...]”,[35] a economia passou a ter um lugar de supremacia. Deslocando a política e suplantando a ética, no dizer de Boff, “surgiu uma economia de mercado de forma que todo o sistema econômico fosse dirigido e controlado  apenas pelo mercado livre de qualquer controle  ou de um limite ético”.[36]
É preciso considerar que, como alternativa ao capitalismo, o socialismo não correspondeu, na medida em que sua aplicação resultou em instrumentalização e destruição do humano e da natureza. Em última instância, as sociedades socialistas e capitalistas são dois polos que devem ser analisados sob o prisma da sociedade industrial. Não obstante, “a crítica do capitalismo feita por Marx recupera hoje toda a sua força original. Apenas que se transforma numa crítica da própria civilização ocidental”.[37] Como diz Hinkelammert, a crise contemporânea deve ser compreendida enquanto “crise de civilização e não simplesmente das relações sociais de produção”.[38] A crise da relação de produção capitalista é uma das expressões desta crise. É a partir deste prisma que a análise deve prosseguir.

2 A usurpação do desejo: o descartável e o vazio como a alma do negócio

Os discursos que sustentam a promessa utópica do mercado total, diz Hinkelammert, “não são mais do que a ponta do iceberg desta grande utopia. Seu campo de propagação e predomínio por excelência é a propaganda comercial.”[39] É um mundo que toca o coração das pessoas, a dimensão do desejo. Porém, é um mundo que não pode e nem pretende realizar o que promete, na medida em que, para manter essa dinâmica funcionando, a convocação ao desejo do consumismo deve ser permanente.
Por um lado, como demonstra Belluzzo, citando Keynes, há um capitalismo que, “impulsionado pelo avanço tecnológico e pela rápida acumulação produtiva”, cria “as condições para a superação das limitações impostas milenarmente à satisfação das necessidades básicas”.[40] O triunfo tecnológico e a expansão da produção acenam para a possibilidade de uma vida repleta de realizações, ampliando o conforto e a realização de muitas necessidades da vida. Em última instância, as pessoas se sentem convocadas para esse mundo da produção da abundância, como se esse mundo fosse uma sociedade perfeita. Então, esse mundo se torna o eixo estruturador da própria existência.  O problema é que o mundo que convoca à produção da abundância é o mesmo mundo que é obcecado pela acumulação de riqueza – crematística. Desse modo, diz Belluzzo, “em sua maníaca obsessão pela acumulação monetária, o capitalismo cria tantos problemas quanto os que consegue resolver. A admirável ‘criatividade’ produtiva e tecnológica não consegue realizar a promessa da vida boa”.[41]
A sanha pela riqueza é o ethos da sociedade aprisionada nas engrenagens de um sistema econômico que se torna um tormento para o ser humano. Daí um dos paradoxos de um mundo em que o livre-mercado se apresenta como portador da promessa da vida boa, embora sua realização seja constantemente frustrada. “Os poderes que o convocam à produção da abundância”, diz Belluzzo, “são os mesmos que submetem as criaturas humanas ao vício do consumismo, à permanente insatisfação das necessidades ilimitadas e aos grilhões do impulso insaciável da acumulação da riqueza monetária”.[42] Há, então, uma coesão social conformada à cultura de sujeitos-consumidores, coexistindo com um certo mal-estar.
No mundo em que mandam os mercados da riqueza financeira e a concorrência entre as grandes corporações, os cidadãos estão divididos entre vencedores e perdedores. Os primeiros, ao acumular capital financeiro, gozam do ‘tempo livre’ e do ‘consumo de luxo’. Os demais se tornam dependentes crônicos da obsessão consumista e do endividamento, permanentemente ameaçados pelo desemprego e, portanto, obrigados a competir desesperadamente pela sobrevivência. Esses controles suaves foram se apoderando das mentes e das almas, mas apresentadas como a prova da soberania indivíduo-consumidor.[43]

Esta é a sociedade unidimensional descrita por Marcuse (1898-1979), a sociedade que emerge como uma consciência feliz e conformada à condição do mercado, porque este elimina o dissenso, a capacidade de pensar criticamente. “As tendências totalitárias da sociedade unidimensional tornam ineficaz o processo tradicional de protesto. [...] ‘O povo’, anteriormente o fermento da transformação social, ‘mudou’, para se tornar o fermento da coesão social”.[44] Na sociedade de consumidores, as pessoas imaginam que vivem em estado de liberdade, quando, na verdade, prevalece uma confortável, polida, razoável e democrática não liberdade. Nesses termos, de acordo com Belluzo, “difunde-se a ideia de que a liberação das forças que impulsionam a acumulação do capital é um movimento ‘natural’ e irreversível’ em direção ao progresso e à realização da autonomia do indivíduo”.[45] Por isso, paradoxalmente, “o povo, eficientemente manipulado e organizado, é livre”.[46]
Nessa produção de uma autonomia conformada ao mercado está a força do aparato de convencimento. É um mundo em que, nas palavras de Kekl, “desejamos o que os outros desejam, ou o que nos convidam a desejar. Uma imagem publicitária eficaz deve apelar ao desejo inconsciente, ao mesmo tempo em que se oferece como objeto de satisfação”.[47] O desejo individual se harmoniza com o desejo social identificado com a sociedade de consumo. Nesse mesmo sentido, Boff escreve que

O sistema do capital e do mercado conseguiu penetrar em todos os poros da subjetividade pessoal e coletiva, logrou determinar o modo de viver, de elaborar as emoções, de relacionar-se com os outros. Divulga-se o sentido de que a vida não tem sentido, se não vier dotada de símbolos de posse e de status, com certo nível de consumo de bens.[48]

Friedman acredita que, mediante a técnica do mercado, “literalmente, milhões de pessoas estão envolvidas em fornecer diariamente um ao outro o pão necessário – além dos automóveis”.[49] Ou seja, não há diferença entre ter acesso ao pão e a possibilidade de adquirir um automóvel. Conforme analisa Mo Sung, depreende-se que “as teorias econômicas liberais e neoliberais e a produção das empresas privadas estão pensadas em termos de satisfação dos desejos dos consumidores. Só que estes desejos são apresentados também como necessidades, e com isso se estabelece a confusão”.[50]
 Essa confusão é como que também parte de uma estratégia da própria indústria cultural ou da publicidade, que transforma a mercadoria em portadora de mitos. Por isso, no dizer de Hinkelammert, “a propaganda comercial não tem como impacto central a informação dos consumidores; aliás, grande parte dela não contém informação alguma. A informação que oferece é o veículo da criação de mitos utópicos”.[51] Seja numa lata de refrigerante ou num automóvel, há um mudo mitificado, o qual promete um mundo melhor e nos faz viver como deuses.
Ainda nos anos de 1950, Victor Lebow, um economista e analista de vendas norte-americano, publica um artigo sobre o preço da concorrência (Price Copetition in 1955), sustentando a ideia de que a economia produtiva exige fazer do consumo sua condição vital. Para tanto, é necessário “que transformemos a compra e o uso de bens em rituais, que procuremos a nossa satisfação espiritual e a satisfação do nosso desejo (ego) no consumo”. [52] Para que a roda da concorrência possa se movimentar, imprime-se a obsolescência como um dos conteúdos centrais do circuito econômico capitalista. Do pão ao automóvel, diz Lebow, “precisamos que os objetos sejam consumidos, destruídos, substituídos e descartados a um ritmo cada vez maior”.[53]
A economia da subsistência humana, em que as pessoas adquirem o necessário para viver, é substituída por uma economia da obsolescência, em que o mercado diz o que é necessário. Nesta condição, as próprias necessidades básicas são transformadas em mercadorias jogadas nas gôndolas dos supermercados, para serem disputadas no campo da sobrevivência consumista. Em última instância, como diz Bauman, é a vida sendo posta à venda. As pessoas são objetivadas e convertidas em bens mercadológicos. “Ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável”.[54]
O problema é que a pessoa se convence de que a vida deve ser assim mesmo. Não só para obter determinada mercadoria, mas, para se tornar ela mesma um produto do desejo, como se isto fosse uma chave ou um bilhete de ingresso no palco da vida a ser consumida. Em outras palavras, ser consumidor significa estar incluído na condição existencial preceituada pela ordem econômica estabelecida. Conforma-se uma concepção dominante em que o sujeito é reduzido à condição de consumidor. Este, o consumidor, passa a ser um modelo de (pseudo) sujeito que deve ser perquirido e desejado inclusive como produto. “Numa sociedade de consumidores, tornar-se uma mercadoria desejável e desejada é a matéria de que são feitos os sonhos e os contos de fadas”.[55] A pessoa não é recepcionada como um ‘EU’ ou um ‘TU’, mas, como diz Buber, como um ‘ISSO’, uma coisa.[56]
Para Mo Sung, este é um dos segredos do dinamismo que faz funcionar o sistema capitalista vigente hoje. Configura-se “a acumulação de riqueza, de mercadorias, como único ou o melhor caminho para se satisfazer o desejo de poder e de consideração alheia, o reconhecimento”.[57] Isso quer dizer que o capitalismo é, no fundo, “um sistema econômico centrado no desejo. Não no desejo de lucro dos empresários, mas fundamentalmente no desejo dos consumidores. O lucro é consequência da eficiência na satisfação dos desejos dos consumidores”.[58] Daí a força do sistema de marketing e propaganda, que é um sistema que “sabe manipular e satisfazer tão bem os desejos dos consumidores que o capitalismo e o seus defensores conseguem angariar tanto apoio”.[59]
O capitalismo mexe com o desejo das pessoas. Porém, não é desejo como tal que interessa ao capital. O interesse, na verdade, centra-se no desejo de compra dos consumidores, que para tal implica o poder de compra – ter dinheiro – e ensejar o lucro. Os desejos se tornam demandas na medida em que são viabilizados pelo poder de compra.

E é como demanda que o tema do desejo entra na dinâmica da globalização econômica. Para que o sistema econômico capitalista possa se globalizar cada vez mais, é preciso que o mercado consumidor se torne cada vez mais global. E para isso, é necessário que todo o mundo vá assimilando o mesmo padrão de consumo, isto é, é preciso que o mundo todo deseje os mesmos tipos de mercadorias.

A partir de um modelo idealizado de vida, tal como o american way of life, o estilo americano de viver, internacionaliza-se um padrão de consumo. Isto é, universaliza-se a compreensão de que o ideal de vida é o padrão de consumo dos países ricos. “O desejo de se tornar um ser humano respeitado pela sociedade os leva a imitar o desejo de consumo dos ricos consumidores dos países ricos”.[60] Ao mesmo tempo, na dimensão da subjetividade, o sujeito introjeta o mundo idealizado como se fosse o seu mundo.
O processo de assimilação “da imagem do ‘consumidor-perfeito’ como modelo de ser humano a ser imitado”, de acordo com Mo Sung, “traz sérios problemas e contradições para a luta de uma sociedade mais justa”.[61] O sujeito que assimila a lógica do opressor (modelo desejado), acaba assumindo a mesma dinâmica opressiva. “Os oprimidos se sentem atraídos pelo opressor, desejam participar da vida deles, ser como eles”.[62] O oprimido que hospeda dentro de si o opressor, como demonstra a Pedagogia do oprimido de Paulo Freire, tem dificuldade de se libertar. “Na ‘imersão’ em que se encontram, não podem os oprimidos divisar, claramente, a ‘ordem’ que serve aos opressores que, de certa forma, ‘vivem’ neles.”[63]
Na sociedade de consumidores, tal como se vivesse as mesmas emoções de um astro do cinema ou do esporte apresentado nas vitrines e nos discursos publicitários, o sujeito deseja ostentar algo que poucos têm e sentir-se parte de uma elite – em linguagem popular, é o “estou podendo”. Daí a força de convencimento que o mercado exerce. De acordo com Mo Sung, é mais pela capacidade de fascinar as pessoas do que pelo uso da força bruta ou pela imposição de seu poder econômico que o capitalismo impõe sua dinâmica, logrando a ideia de que o mercado é o fundamento e o centro societário. Desse modo, “a busca da riqueza e, com isso, a ostentação das mercadorias de ‘grife’ se tornaram o mais importante objetivo na vida da maioria das pessoas, particularmente os integrados no mercado. A mercadoria tornou-se o ‘o’ objeto de desejo”.[64]
Assim sendo, há um processo de usurpação do desejo, quando este é entendido numa dimensão de abertura ao Outro e à vida que inspira um sentido de humanização e libertação do próprio sujeito, como propõe Lévinas. “Desejo sem fim, de além do ser: des-interessameto, transcendência – desejo do Bem”.[65] Então, na dinâmica mercadológica, o desejo é colonizado, para que o descartável e o vazio apaguem a memória de um desejo insuflado pelo Infinito, que é o desejo do Outro em mim. E um desejo esvaziado de sua própria humanidade é a alma do negócio.

3 Desejo mimético: a mística neoliberal
Como assinalado na secção anterior, um dos principais mecanismos que faz funcionar a economia capitalista é a cultura de consumo. Daí toda uma indústria de marketing, de propaganda que imprime uma dinâmica de vida a ser seguida como desejo mimético. Essa compreensão pode ser ilustrada como, por exemplo, em Hayek, quando ele diz que “inicialmente, um produto novo é, em geral, ‘o capricho dos poucos escolhidos, antes de se tornar algo desejado por todos, passando a fazer parte das necessidades da vida. Pois o luxo de hoje é a necessidade de amanhã’”. Desse modo, prossegue esse defensor do neoliberalismo, “essas novas coisas, muitas vezes, se tornarão disponíveis à maior parte das pessoas somente porque, por algum tempo, foram o luxo de uma minoria”.[66]
Na leitura de Mo Sung, “Hayek defende a ideia de que a produção econômica deve estar voltada para satisfazer os desejos da elite, pois estes serão as futuras necessidades das massas. E para a massificação da produção destes bens, é necessário o progresso”.[67] O desejo da maioria imitar o capricho dos ‘poucos escolhidos’ significa também consumir as novidades do progresso. E essa dinâmica funciona como uma cataculpa que impulsiona o progresso à produção destes produtos. Então, infere-se que a obsessão pelo consumo produz uma séria ameaça ao meio ambiente. Algo que, no entanto, é desprezado por Hayek, como se pode observar em sua rejeição às conclusões do relatório Os limites do crescimento (1972), um estudo encomendado pelo Clube de Roma e que aponta o problema do meio ambiente.[68]
Hayek, aposta na cultura de consumo como uma dinâmica benéfica para a economia capitalista. No entanto, ainda na década de 1970, Celso Furtando (1920-2004), um eminente economista brasileiro, chamava a atenção para “a crescente hegemonia das grandes empresas, na orientação do processo de acumulação”. Esse processo “traduz-se, no centro, por uma tendência à homogeneização dos padrões de consumo e, nas economias periféricas, por um distanciamento das formas de vida de uma minoria privilegiada com respeito à massa da população.”[69] Em outras palavras, o avanço econômico pela ampliação da produção consumista não se sustenta. No fundo, é um mito.
Trata-se um mito que tem sérias consequências como, por exemplo, na fomentação de uma cultura de violência. Nesse sentido, o desejo consumista pode ser traduzido pelo conceito de desejo mimético, como propõe René Girard, em A violência e o sagrado (1972) e em Coisas ocultas desde a fundação do mundo (1978). O desejo mimético diz respeito ao processo em que o sujeito internaliza, a partir de uma subjetividade autocentrada, um desejo evocado a partir do outro, sendo este outro um desejo modelo a ser imitado. Girard propõe que, num primeiro momento, a mimese aproxima o sujeito do outro a ser seguido, numa relação de discípulo e mestre. Então, o desejo se apresenta como uma força de transformação e de abertura ao novo como um processo que liberta. Esta é uma mimese de aprendizagem.
Segundo Girard, “o desejo é a própria crise mimética, a rivalidade aguda em relação ao outro, em todas as atividades ditas ‘privadas’, que vão do erotismo à atividade profissional ou intelectual”.[70] Na medida em que o desejo mimético se estabelece numa relação de competição, em que o outro é recepcionado como um rival ou um obstáculo para a aquisição de um objeto pretendido, o passo seguinte é o da mimese da rivalidade, da hostilidade e da violência. Esta violência pode ser tanto de forma explícita como simbólica. Em nível simbólico, “este desejo mimético coincide com o contágio impuro; motor da crise sacrificial, ele destruiria toda a comunidade se não houvesse a vítima expiatória para detê-lo e mimese ritual para impedi-lo de se desencadear”. [71] Nesse caso, a vítima expiatória pode ser um totem, uma vítima animal, uma figura religiosa, que canaliza as energias para as formas rituais, evitando a convergência para a forma da violência direta. A crise sacrifical é um elemento fundador da comunidade e da cultura.
Entretanto, quando ocorre o acirramento da rivalidade, sobretudo em sociedades que primam pela competição, frequentemente, o desejo mimético se torna uma mola propulsora de violência. “A violência torna-se o significante desejável absoluto, da autossuficiência divina, da ‘bela totalidade’, que não apareceria mais como tal se deixasse de ser impenetrável e inacessível”.[72] Em última instância, “a possessão não é senão a forma extrema da alienação do desejo do outro”.[73] Muitas vezes, a concorrência cria uma espécie de unidade mimética, em que todos os rivais se unem contra um único adversário. Produz-se, então, a vítima, um bode-expiatório, o diferente (estrangeiros, doentes, judeus...) que deve ser perseguido, sacrificado. Porém, “[...] a vítima deve ser diferente dos membros da comunidade, mas também assemelhar-se a eles”.[74]
Não obstante o processo civilizatório ter criado a lei, o Estado, com mecanismo de controle da violência sacrifical, o processo de desejo mimético continua ativo e produzido suas vítimas, sejam nos campos de concentração nazistas sejam nas estruturas que produzem injustiça e opressão. Então, as injustiças sociais e as mortes dos excluídos e inocentes são escamoteadas ou justificadas como sacrifícios necessários. Consuma-se a brutalidade da violência nua e crua, sem subterfúgios. 

Confrontados a essa situação, podemos pensar que os homens irão se sentir frequentemente tentados a devolver o remédio tradicional à eficácia perdida, aumentado cada vez mais suas doses, imolando cada vez mais vítimas em holocaustos sempre pretensamente sacrificais, mas que o são cada vez menos.[75]

Por outro lado, como processo mimético – o desejo de ser como o outro -, os injustiçados e oprimidos também respondem com violência. No dizer de Boff, “os oprimidos são violentos porque se encontram, à sua revelia, enquadrados numa sociedade violenta. Eles são feitos vítimas sobre as quais a classe dominante descarrega toda a sua violência e elabora a paz entre os lobos”.[76] Pois bem, na medida em que a ênfase econômica capitalista reforça justamente a mimese da rivalidade, alimenta-se o círculo vicioso de violência. Então, diante desse quadro, como um antídoto, no dizer de Boff, “implicaria uma revolução nas relações sociais, baseadas não mais no desejo mimético, mas no desejo solidário e comunitário”.[77] Ora, atualmente, como demonstra Bauman, não é o desejo solidário que conta, mas o desejo do consumo. “A sociedade contemporânea admite seus membros primeiramente como consumidores [...]. A norma quebrada pelos pobres de hoje, que os coloca à parte e os rotula de ‘anormais’, é a da competência ou aptidão de consumo.”[78] Não fazer parte da sociedade de consumidores, isto é, satisfazer-se com um conjunto finito de necessidades, ou então não ter as condições necessárias (ter dinheiro) para participar, significa entrar no rol dos consumidores falhos, portanto, suscetíveis ao descarte. “Os pobres da sociedade de consumidores são inúteis. [...] Desnecessários, indesejados, desamparados – onde é o lugar deles? A resposta mais curta é: fora de nossas vistas”.[79] Isto é, na sociedade de consumidores, não são desejados.
Se os indesejados aparecerem nos templos de consumo – os shoppings centers –, para um ‘rolezinho’ (diminutivo de ‘rolê’ ou ‘rolé que, em linguagem informal, significa fazer um pequeno passeio), eles devem ser imediatamente banidos e enquadrados criminalmente.[80] Assim, os shoppings que são também concebidos como espaço de encontro, diversão, desde que seus transeuntes tenham possibilidade de compra, recepcionam os ‘consumidores falhos’ como caso de contensão policial. Nas palavras de Bauman, “só como mercadorias, só se forem capazes de demonstrar seu próprio valor de uso, é que os consumidores podem ter acesso à vida de consumo”.[81]
Quando centenas de jovens, sem poder de compra, encontram-se num shopping, porque, em grande parte, em suas comunidades periféricas estão ausentes equipamentos públicos (praças, ginásios, escolas abertas...), eles estão como que fora de lugar. A sociedade dos que podem consumir, reage à presença dos indesejados, enquadrando-os na lei da indiferença e da exclusão. Por outro lado, como desejo mimético, há todo um discurso publicitário insuflando ao contrário. É um discurso que diz que, frequentar o mundo habitado por consumidores, significa incorporar uma estética juvenil globalizada. Esta estética é apresentada como sinônimo de reconhecimento social e autonomia. Para muitos, trata-se de uma condição não acessível. Daí a dinâmica do desejo mimético como uma expressão que elucida, em certa medida, o recrudescimento da violência, tal como ocorre no Brasil. Violência esta que implica sobretudo a realidade infanto-juvenil. No dizer de Oliveira,

É assim que o Brasil em tempos de globalização, tornou-se uma sociedade embrutecedora, tanto por produzir a impotência quanto a onipotência diante da desestabilização. Cristalizam-se, em todos os segmentos sociais, a lei do sucesso a qualquer preço e sem limites. Isso ocorre para deixar as novas gerações com uma sensação de descartabilidade, que leva os jovens a uma experiência intensa de investimento absoluto no presente, de transposição de limites e quebras de normas, tornando a violência infanto-juvenil um sintoma, acima de tudo, social.[82]

O fetiche da mercadoria move o desejo mimético, sinalizando uma necessidade social ou psíquica. Para se sentirem pertencentes a um grupo social, as pessoas são impulsionadas a adquirir o produto da moda – o fetiche. Como destaca Mo Sung, “é por causa do ‘ser’ misterioso e infinito que se busca por ‘trás’, por exemplo, de um carro importado, um grande desejo mimético hoje, que as pessoas não aceitam e nem compreendem o porquê da redistribuição da renda”.[83] Pessoas que não conseguem comprar a mercadoria e nem conseguem superar a mística do fetiche, que está ao redor da mercadoria desejada, sentem-se inferiorizadas, deprimidas. Ao mesmo tempo, assumem uma atitude de indiferença ou mesmo de reação contra aqueles que se insurgem diante do espírito do mercado. Nesse mesmo sentido, com Belluzzo:

A ética da solidariedade é substituída pela ética da eficiência e, dessa forma, os programas de redistribuição de renda, reparação de desequilíbrios sociais e assistência a grupos marginalizados têm encontrado forte resistência na casamata republicana. Não há dúvida de que esse novo individualismo tem sua base social originária na grande classe média produzida pela longa prosperidade e pelos processos mais igualitários que predominaram na era keynesiana. Hoje, o novo individualismo encontra reforço e sustentação no aparecimento de milhões de empresários terceirizados e autonomizados, criaturas das mudanças nos métodos de trabalho e na organização da grande empresa.[84]

O embrutecimento da sociedade evidencia que há um processo de fragilização dos pactos sociais. Diluem-se as relações de poder reguladas pela esfera política. Na medida em que os neoliberais defendem a solução dos problemas econômicos e sociais pela livre ação do mercado, promove-se uma cultura da indiferença. É a fé na mão invisível que diz que não se deve interferir no mercado. Toda vez que tencionamos conscientemente intervir, o fazemos através do Estado e dos movimentos sociais. E isso é prejudicial ao mercado. Então, “nós os seres humanos devemos abandonar o desejo de construir uma sociedade melhor”.[85]
Desse modo, de acordo com Hinkelammert, ao mesmo tempo em que “a ideologia da societas perfecta conduz à diabolização da solidariedade”, há também um processo de introjeção dessa diabolização. “Todos solidariamente renunciam à solidariedade; todos unidos combatem aqueles que querem estar unidos. Como na pro-slavery-rebellion, os amos dos escravos atuam de forma solidária a favor da escravidão e contra a solidariedade humana”.[86] Questões como justiça social, igualdade de oportunidades, direitos humanos, ética, assim por diante, são consideradas obsessões ou meros sentimentos coletivistas. Para Hayek, por exemplo, a Declaração dos Direitos Humanos da Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948 afronta a ideia de uma sociedade aberta. Segundo ele,

Todo o documento é, na verdade, lavrado naquele jargão de pensamento organizacional que estamos acostumados a esperar no pronunciamento de líderes sindicais ou da Organização Internacional do Trabalho e que reflete uma atitude comum a empregados do setor privado, funcionários públicos e aos burocratas das grandes empresas, mas que é de todo incongruente com os princípios em que se fundamenta a ordem de uma Grande Sociedade. Se o documento fosse apenas produto de um grupo internacional de filósofos sociais (como o foi na origem), constituiria somente indício um tanto alarmante da profunda influência do pensamento organizacional nas concepções desses filósofos sociais e do seu total alheamento aos ideais básicos de uma sociedade livre. Mas sua aceitação por um corpo de estadistas presumivelmente responsáveis, empenhados a sério na criação de uma ordem internacional pacífica, motivo a uma apreensão muito maior.[87]

Para Hayek, o princípio orientador deve ser “o de que uma política para a liberdade para o indivíduo é a única política que de fato conduz ao progresso”.[88] A obsessão pela igualdade de oportunidades frustra as esperanças de liberdade. Para ele, ainda que reconheça que “as oportunidades ao alcance dos pobres são muito mais limitadas que as acessíveis aos ricos”, o princípio da igualdade se estabelece pela liberdade de concorrência, a qual, por sua vez, depende da capacidade e da sorte de cada um.[89] Em suma, é um pensamento modelado para justificar o modelo de uma economia voltada para a arte do enriquecimento de uma minoria, a elite do capitalismo mundial.
Assim, a despeito do Estado de bem-estar que possibilitou certa igualdade no período que cobre desde o final da Segunda Guerra ao início dos anos de 1970, o neoliberalismo introduziu dinâmicas que acirraram a concorrência entre trabalhadores, empresas e nações. Para Beluzzo, que analisa a destituição do Estado de bem-estar e a introdução de políticas econômicas liberalizantes,

A abertura dos mercados e o acirramento da concorrência coexistiam com a tendência ao monopólio e, assim, impediram que os cidadãos, no exercício da política democrática, exercitassem o direito de decidir sobre a própria vida. [...] Na era do capitalismo ‘turbinado’ e financeirizado, os frutos do crescimento se concentraram nas mãos dos detentores de carteiras de títulos que representam direitos à apropriação da renda e da riqueza. Para os demais, perduravam a ameaça do desemprego, a crescente insegurança e precariedade das novas ocupações, a exclusão social.[90]

Ao redor do discurso da mão invisível e do mercado livre, cria-se um tabu, uma interdição. O destino da humanidade deve ser confiado à sociedade de mercado. Os sofrimentos dos desempregados e dos excluídos, na medida em que as leis do mercado os solicitam, devem ser vistos como sacrifícios necessários. Enfim, como diz Mo Sung “esta mística cruel é o motor secreto do compromisso neoliberal e por isso se expressa no culto, não a Deus da misericórdia e da Vida, mas sim à eficiência no e do mercado”.[91]


[1]
ASSMANN, Hugo; HINKELAMMERT, Franz. A idolatria do mercado: ensaio sobre economia e teologia. São Paulo: Vozes, 1989, p. 197.
[2] BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 21.
[3] BENJAMIN, 2013, p. 22.
[4] BENJAMIN, 2013, p. 22.
[5] ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 83.
[6] HINKELAMMERT, Franz. Economia e teologia: as leis do mercado e a fé. Boletim Teológico, São Leopoldo, v. 11, n. 4, abr. 1990, p. 58.
[7] ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 83.
[8] HINKELAMMERT, 1990, p. 58.
[9] HINKELAMMERT, Franz. Crítica à razão utópica. Chapecó: Argos, 2013, p. 297.
[10] CONDORI, Víctor C. (et al.). Vivir bien: contextos e interpretaciones. La Paz: ISEAT, 2013, p. 30.
[11] Lévinas, Emmanuel. Entre nós. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 174.
[12] STIGLITZ, Joseph. A globalização e seus malefeitos: a promessa não-cumprida de benefícios globais. 4. ed. São Paulo: Futura, 2003, p. 30.
[13] MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 43.
[14] BELLUZZO, Luiz Gonzaga. O capital e suas metamorfoses. São Paulo: Unesp, 2013, p. 159, observa que esta forma de deslocamento do capital é uma raízes da crise econômica atual (2008-). Com efeito, “as grandes empresas deslocaram sua produção manufatureira para as regiões em que prevaleciam baixos salários, câmbio desvalorizado e alta produtividade. Norte-americanos e europeus correram para a Ásia e o os alemães para os vizinhos do Leste. Destas praças, exportaram manufaturas baratas para os países e regiões de origem ou de sua influência. Embalados pela expansão dos gastos das famílias, realizaram lucros e acumularam caixa (em geral nos países fiscais). O deslocamento das empresas norte-americanas cavou alentados déficits em conta-corrente na economia territorial da pátria-mãe. Já os alemães, a despeito da movida para o Leste Europeu, financiaram os enormes déficits em conta-corrente dos vizinhos da Eurolândia.”
[15] MARX, Karl. O capital: livro I. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 573-574.
[16] MARX, 2013, p. 471.
[17] Organização Internacional do Trabalho (OIT). Aliança Global Contra o Trabalho Forçado. Genebra: OIT, 2015, p. 01.
[18] Cf. UNICEF. Disponível em: ; Acesso em: 12 abr. 2014.
[19] STIGLITZ, 2003, p. 30.
[20] Lévinas, 1997, p. 71.
[21] RUSSO, Renato. Perfeição. In: Legião Urbana. O descobrimento do Brasil. São Paulo: EMI, 1993, faixa 06.
[22] MARX, 2011, p. 323.
[23] HINKELAMMERT, 2013, p. 321.
[24] Hinkelammert, 2013, p. 286.
[25] Hinkelammert, 1991, p. 224.
[26] SEN, Amartya. Sobre ética e economia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 23.
[27] MORIN; KERN. Terra-Pátria. Porto Alegre: Sulina, 1995, p. 21.
[28] MORIN; KERN, 1995, p. 24.
[29] KERN; MORIN, 1995, p. 22.
[30] RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 64.
[31] KERN; MORIN, 1995, p. 22.
[32] KERN; MORIN, 1995, p. 26
[33] KERN; MORIN, 1995, p. 26
[34] KERN; MORIN, 1995, p. 25.
[35] BEAUD, Michel. História do capitalismo: de 1500 aos nossos dias. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 187.
[36] BOFF, Leonardo. O tempo da grande transformação e da corrupção geral. Disponível em: . Acesso em: 19 jan. 2014.
[37] HINKELAMMERT, 2003, p. 18.
[38] HINKELAMMERT, 2003, p. 18.
[39] HINKELAMMERT, 2013, p. 298
[40] BELLUZZO, 2013, p. 22.
[41] BELLUZZO, 2013, p. 22.
[42] BELLUZZO, 2013, p. 22.
[43] BELLUZZO, 2013, p. 27.
[44] MARCUSE, Herbert. Ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p. 234.
[45] BELLUZZO, 2013, p. 33.
[46] MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Guanabara, s.d., p. 14.
[47] KEHL, Maria Rita. O inconsciente e o lucro. Família Cristã, São Paulo, ano 68, n. 802, 29 out. 2002.
[48] BOFF, Leonardo. Ética da vida. 2. ed. Brasília: Letraviva, 2000b, p. 136.
[49] FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985, 1985, p. 21.
[50] MO SUNG, Jung Mo. Desejo, Mercado e religião. 4. ed. São Paulo: Fonte Editorial, 2010, p. 55.
[51] HINKELAMMERT, 2013, p. 298.
[52] LEBOW, Victor.  Price Competition in 1955. Jounal of Retailing, 1955, p. 03. Disponível em: http://hundredgoals.files.wordpress.com/2009/05/journal-of-retailing.pdf:  Our enormously productive economy demands that we make consumption our way of life, that we convert the buying and use of goods into rituals, that we seek our spiritual satisfactions, our ego satisfactions, in consumption.
[53] LEBOW, 1955, p. 03. We need things consumed, burned up, worn out, replaced, and discarded at an ever increasing pace”.
[54] BAUMAN, Zigmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercado. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 20.
[55] BAUMAN, 2008, p. 22.
[56] Cf. BUBER, Martin.  Eu e tu. 8. ed. São Paulo: Centauro, 2003, p. 03.
[57] MO SUNG, 2010, p. 11.
[58] MO SUNG, 2010, p. 12.
[59] MO SUNG, 2010, p. 12.
[60] MO SUNG, 2010, p. 13.
[61] MO SUNG, 2010, p. 13.
[62] MO SUNG, 2010, p. 14.
[63] FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 41. ed. São Paulo: Paz e Terra,2005, p. 55.
[64] MO SUNG, 2010, p. 10.
[65] LÉVINAS, Emannuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 2000, p. 100. Ver também DALLA ROSA, 2012, p. 62-65.
[66] HAYEK, Friedrich. Os fundamentos da liberdade. São Paulo: Visão, 1983, p. 45.
[67] MO SUNG, 2010, p. 61.
[68] Cf. HAYEK, 1983, p. 521.
[69] FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974, p.  69,
[70] GIRARD, René. Coisas ocultas desde a fundação do mundo. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 338.
[71] GIRARD, René. A violência e o Sagrado. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1990, p. 187.
[72] GIRARD, 1990, p. 187.
[73] GIRARD, 1990, p. 207.
[74] GIRARD, 2008, p. 93.
[75] GIRARD, 2008, p. 166.
[76] BOFF, Leonardo. A voz do arco-íris.  Brasília: Letraviva, 2000, p. 57,
[77] BOFF, 2000, p. 58.
[78] BAUMAN, 2008, p. 160.
[79] BAUMAN, 2008, p. 160.
[80] Referência aos grandes contingentes de jovens da periferia (São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre...) que se mobilizaram, por intermédio de redes sociais (Facebook), para um ‘rolezinho’ em centros de compras.
[81] BAUMAN, Zigmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 24.
[82] OLIVEIRA, Carmen Silveira. Sobrevivendo ao inferno: a violência juvenil na contemporaneidade. Porto Alegre: Sulina, 2001, p. 238.
[83] MO SUNG, 2010, p. 74.
[84] BELLUZZO, 2013, p. 176.
[85] MO SUNG, 2010, p. 103.
[86] HINKELAMMERT, 2013, p. 297.
[87] HAYEK, 1985, p. 127.
[88] HAYEK, Friedrich. O caminho da servidão. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, p. 222.
[89] HAYEK, 2010, p. 113.
[90] BELLUZZO, 2013, p. 173.
[91] MO SUNG, 2010, p. 104.

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