Alteridade e educação no pensamento de Emmanuel Lévinas
Cinco adolescentes mataram hoje, barbaramente, um índio pataxó, que
dormia tranqüilo, numa estação de ônibus, em Brasília. Disseram
à polícia que estavam brincando. Que coisa estranha. Brincando de matar.
Tocaram fogo no corpo do índio como quem queima uma inutilidade. Um trapo
inprestável. Para sua crueldade e seu gosto da morte, o índio não era um tu ou um ele. Era aquilo, aquela coisa
ali. Uma espécie de sombra
inferior no mundo. Inferior e incômoda, incômoda e ofensiva. (freire, 2000, p. 65).
Jacques
Derrida, filósofo francês (El Biar, Argélia, 1930 — Paris, 2004), discípulo de Levinas,
no ensaio A Palavra Acolhimento
indica o sentido que uma das principais obras de seu mestre possa significar: “Totalidade e Infinito nos lega um imenso
tratado sobre a hospitalidade”
(dérrida, 1997, p. 39). Hospitalidade significa dar boa acolhida ao forasteiro
que bate à minha porta. Como quem pede hospedagem, a obra de Levinas é uma
alteridade que me desassossega e me solicita, de forma incondicional, uma
atitude de hospitalidade.
Acolher
o outro, na perspectiva de Levinas, não significa fazer com que o outro entre
na minha casa no intuito de acomodá-lo conforme os meus critérios. Em outras
palavras, o outro que vem a mim e pede acolhida traz uma boa nova, uma
surpresa, que me desinstala. Oferecer hospedagem, portanto, é ter uma atitude
desvelada e não alérgica diante da palavra que o outro me dirige. Por isso, Levinas
diz que acolher o outro é estar aberto a um ensinamento:
Abordar Outrem no discurso é acolher a sua expressão
onde ele ultrapassa em cada instante a idéia que dele tiraria um pensamento. É,
pois, receber de Outrem para além da
capacidade do Eu: o que significa exatamente: ter a idéia do Infinito. Mas isso
também significa ser ensinado. A relação com Outrem ou o Discurso é uma relação
não-alérgica, uma relação ética, mas um discurso acolhido é um ensinamento. (levinas, 2000, p. 38).
A alteridade,
vivida como expressão ética, é o critério a partir do qual Levinas faz sua
leitura antropológica. À medida que o ser humano se abre para outro e busca,
diante desse outro, assumir uma atitude de acolhida e bondade, a vida vai como
se revelando em mais vida.
No horizonte
dessa reflexão inicial sobre o sentido levinasiano de hospitalidade e acolhida,
interpõe-se o desafio de assumir uma atitude de abertura à alteridade que emana
do discurso que Levinas pronuncia ao longo de sua obra e, de modo especial, em Totalidade e infinito. Trata-se,
portanto, de pôr-se num movimento de escuta e acolhimento ao que Levinas tem
para ensinar sobre o sentido das relações inter-humanas.
A interdição da alteridade como marca da
civilização ocidental
A Ética da
Alteridade, marca do pensamento de Emmanuel Lévinas, é expressão de uma
interpelação do discurso filosófico a partir do outro. E ao referir-se ao tema
da alteridade, Lévinas não o faz de forma genérica e abstrata, mas é no rosto
do estrangeiro, da viúva e do órfão que a categoria do outro se manifesta de
forma explícita. Assim, o mandato bíblico “não explore o imigrante nem o oprima
[...], não maltrate a viúva nem o órfão”[1]
é assumido por Lévinas como manifestação de uma alteridade que clama a cada ser
humano a despertar e a assumir uma atitude de abertura e hospitalidade.
Diante de
expressões anti-humanistas em que o outro é desprezado, Emmanuel Levinas é um
pensador que ousa questionar o exacerbado individualismo da sociedade ocidental.
Seu questionamento, longe de ser um niilismo, tão presente em muitas correntes
críticas, desperta a esperança e a busca pela construção de um mundo pautado
pela ética da alteridade. Testemunhando os horrores dos campos de concentração
nazistas, Levinas assume a tarefa de compreender a humanidade na perspectiva do
outro, na qual cada pessoa se sente desafiada a responder ao apelo que brota
deste outro. E no processo de abrir-se à alteridade, o ser humano vai se
fazendo mais humano.
No encontro
com o outro, os seres humanos vão se constituindo sujeitos da própria história.
É no encontro pessoa-pessoa, que a humanidade vai acontecendo. A alteridade não
é outra coisa senão esse encontro que faz cada pessoa ser mais humana. No
entanto, ao falarmos no tema da alteridade, salta aos olhos que no atual
contexto de mundo vivemos uma cultura de negação do autêntico encontro
inter-humano. A sociedade contemporânea traz como uma de suas marcas a
interdição da alteridade. O homem pós-moderno, identificado pelo exacerbado
individualismo que se expressa na sociedade de mercado, tem dificuldade de
incluir na sua agenda questões que envolvem a solidariedade, o respeito, a
tolerância, a cidadania, a ética, enfim, tudo que envolve o cuidado da vida em
suas diversas manifestações.
O mundo
contemporâneo, pautado em princípios neoliberais, parece ter dificuldade em
oferecer espaços em que a participação democrática e a cidadania sejam
verdadeiramente valorizadas. Nesse sentido, as palavras de Robert W. McChesney,
são ilustrativas:
Uma
cultura política vibrante precisa de grupos comunitários, bibliotecas, locais
para reuniões públicas, associações voluntárias e sindicatos que propiciem
formas de comunicação, encontro e integração de cidadãos. A democracia
neoliberal, com sua idéia de mercado über
alles, nunca tem na mira esse setor. Em vez de cidadãos, ela produz
consumidores. Em vez de comunidades, produz shopping
centers. O que sobra é uma sociedade atomizada, de pessoas sem compromisso,
desmoralizadas e socialmente impotentes. (McChesney,
2002, p. 11-12).
Já o
sociólogo polonês Zygmunt Bauman lembra que cada sociedade, em épocas
diferentes, produziu seus estranhos, isto é, pessoas que não se enquadravam nos
esquemas ditos ‘normais’. Para o mundo pós-moderno, os estranhos são aqueles
que não se enquadram na era do consumo. Deparamo-nos com um modelo social em
que ser pobre é ser criminoso. Estar
fora do mundo do consumo é ser a ‘sujeira’ deste mundo. Numa expressão de Z.
Bauman, são consumidores falhos:
Uma vez
que o critério da pureza é a aptidão de participar do jogo consumista, os
deixados fora como um ‘problema’, como a ‘sujeira’ que precisa ser removida,
são consumidores falhos – pessoas
incapazes de ser ‘indivíduos livres’ conforme o senso de ‘liberdade’ definido
em função do poder de escolha do consumidor. São eles os novos ‘impuros’, que
não se ajustam ao novo esquema de pureza. (bauman,
1998, p. 24).
O panorama de
mundo que se apresenta não é nada tranqüilizador. De fato, como bem
caracterizou Fritjof Capra, no livro O
ponto de mutação, a humanidade vive uma crise de proporções nunca vistas em
toda a história, pois “pela primeira vez, temos que nos defrontar com a real
ameaça da extinção da raça humana e de toda a vida do planeta” (capra, 2002, p. 19). Nesse mesmo
sentido, Leonardo Boff dirá que vivemos uma crise civilizacional, que se
expressa na falta de cuidado pela vida. Na era da comunicação, as pessoas nunca
se sentiram tão sozinhas: “a sociedade contemporânea, chamada sociedade do
conhecimento e da comunicação, está criando, contraditoriamente, cada vez mais
incomunicação e solidão entre as pessoas”. (BOFF, 2000, p. 11).
Assim diante
de cenários de mundo em que a civilização parece ter dificuldades em assumir
processos de vida que dignifiquem a humanidade, o sofrimento dos pobres e dos
insultados pela sociedade de consumo, interpela-nos a assumir uma atitude
comprometida com a causa da humanização. Nas palavras do teólogo Alfonso G.
Rubio
No encontro pessoa-pessoa com o injustiçado e
marginalizado, a interpelação que vem do outro torna-se mais urgente e
questionadora, destruindo as falsas seguranças e as racionalizações com que
costuma ser encoberta a injustiça e a omissão diante das suas causas. O
encontro pessoa-pessoa é necessário para a humanização do ser humano. Trata-se
de um encontro, para além de toda perspectiva privatizante e intimista, que
exige compromissos pela transformação de estruturas e sistemas que obstaculizam
ou impedem a personalização de cada seu humano. (rubio, 1989, p. 375).
Discutir o
tema da alteridade no contexto educativo é de certa forma contrastar com uma
sociedade que teima tolher a palavra do outro.
Diante de um cenário de mundo, onde os laços de humanidade parecem estar
em processo de desintegração, torna-se explícito o desafio de pensarmos outras
formas de conceber a vida. A afirmação de uma cultura de paz ou de violência
passa pelas opções que as pessoas fazem para suas vidas. A história da
civilização é construída pelo ser humano, Em outras palavras, as feições que a
humanidade vai tomando não acontecem por acaso, mas são expressões da vida que
foi sendo construída pela própria humanidade.
Diferente
de uma visão antropológica centrada na idéia de que o ser humano é condenado a
viver sob a lógica da competição, da conquista, necessitando de força bruta
para se afirmar, Levinas propõe a concepção de que o humano se constrói à
medida que se abre à humanidade do outro homem. A ética, em Levinas, não é
apenas uma dimensão do ser como propunha a tradição ontológica, particularmente
expressa por Heidegger. A ética, como expressão da alteridade, é a filosofia
primeira que antecede a ontologia. Levinas entende que a filosofia ocidental,
dos pré-socráricos a Heidegger, centrou-se fundamentalmente na ‘questão do
ser’, esquecendo-se da ‘questão do outro’.
A partir da
experiência mosaico-profética, Lévinas apresenta o humanismo do outro homem como contraponto ao ser ontológico da
tradição grego-ocidental. O encontro com o outro é a experiência originária na
qual se revela o sentido do humano e que se estabelece como responsabilidade
ética. O sentido do humano se expressa no encontro com o outro, ou seja, o ser
não se faz humano em si mesmo, mas na interação e na abertura ao outro.
Trata-se, em outras palavras, pensar o ser humano de um outro modo de ser, fora
do parâmetro da idéia de essência. A ética da alteridade é esse outro modo de
ser. Com efeito, Lévinas escreve que
“não é necessário pensar o homem em função do ser e do não-ser, entendidos como
referências últimas. [...] A ruptura da essência é ética” (tradução própria).[2]
Na
perspectiva levinasiana, a humanização passa pela relação de alteridade em que
cada ser humano é acolhido sem mediações ou representações. Em outras palavras,
a singularidade de cada ser humano deve ser acolhida como valor único,
irredutível a qualquer tipo de universalização. Assim, a relação inter-humana
que Lévinas propõe, vai de encontro à compreensão de homem que foi se
cristalizando na cultura ocidental e que a educação, em suas diversas expressões,
acabou incorporando e reforçando. Pode-se pensar aqui, por exemplo, na forma
como se dá o processo de aquisição do conhecimento na educação tradicional ou
bancária, como diria Paulo Freire, em que o educando, enquanto mero ‘receptor’
de conteúdos, tem sua alteridade despojada.
A
ontologia, enquanto primado do ser sobre o ente, é, de certa forma, a
justificação de um estado de vida gerido pelo ideal de um eu totalitário. Na
lógica da mesmidade – eu mesmo –, em que o eu se identifica com o ser, não há
espaço para a alteridade. O outro, enquanto é diferente e estranho a mim,
precisa ser controlado e neutralizado.
Na
perspectiva tradicional em que o ser se estabeleceu como centro, o rosto do
outro foi ofuscado e inclusive negado. Dialogando com diversos pensadores da
filosofia ocidental, particularmente com Husserl, Heidegger e Rosenzeig, Levinas
procura mostrar a insuficiência do paradigma ontológico e, ao mesmo tempo,
propõe a abertura ao infinito e à responsabilidade pelo outro como resposta à
questão humana. Falando de uma lógica reducionista, na qual o outro é
instrumentalizado e transformado em mero objeto de conhecimento, conforme
preconiza o ideal da razão ocidental, Levinas expressa:
A neutralização do Outro, que se torna tema ou objeto
– que aparece, isto é, se coloca na claridade – é precisamente a sua redução ao
Mesmo. Conhecer ontologicamente é surpreender no ente oposto aquilo por que ele
não é este ente, este estranho, mas aquilo por que ele se trai de algum modo,
se entrega, se abandona ao horizonte em que se perde e aparece, se capta, se
torna conceito. Conhecer equivale a captar o ser a partir de nada ou a
reduzi-lo a nada, arrebatar-lhe a alteridade. (levinas, 2000, p. 31).
O
diferente assusta, desassossega. Assim, na perspectiva ontológica não há espaço
para que a alteridade se manifeste. Pelo contrário, há uma incessante busca
pela eliminação do diferente. O ideal de
conhecimento, que foi sendo construído desde os primeiros filósofos gregos, tem
justamente a pretensão de garantir a tranqüilidade do mesmo mediante o controle
sobre outro.
A obra de
Emmanuel Levinas, que passou para a história do pensamento como Ética da
Alteridade, toca nas raízes mais profundas dos desafios que afligem o mundo
contemporâneo. Por isso, a ética da alteridade levinasiana não é apenas mais
uma categoria filosófica entre outras, mas é um modo de compreender o ser
humano que difere radicalmente da concepção antropológica forjada na tradição
ocidental, onde sobressai o paradigma de um eu solipsista, solitário, fechado para
o outro.
Toda uma gama
de conceitos, sistemas, concepções de vida que o pensamento tradicional erigiu
desde a Grécia antiga, Lévinas busca contrapô-los com a sua óptica da ética da
alteridade, inspirada na tradição bíblica. As expressões totalidade e infinito
indicam justamente esta contraposição.
Enquanto a categoria “totalidade é a totalidade-totalizada de
Hegel, o absoluto e o mundo de Heidegger como totalidade que tudo engloba”[3],
o conceito de infinito, na manifestação do outro, indica a verdadeira
essência do ser humano: acolher o outro em seu infinito mistério, como outro
livre e que exige justiça.
O outro
levinasiano, conforme Vieira de Melo, “é terra santa, sacralidade absoluta.
Para aproximar-se dele é necessário tirar as sandálias, despojar-se de si
mesmo, escutá-lo, e fazer-se responsável pela sua existência”.[4] À medida que o ser humano se abre para outro e
busca, diante desse outro, assumir uma atitude de acolhida e bondade, a vida
vai como se revelando em mais vida. Lévinas dirá que a dimensão da ética,
entendida como abertura ao outro, é a condição para que o processo de
humanização aconteça. E nessa caminhada, cada pessoa vai se dando conta que tal
processo é motivado por um desejo infinito que o invade. Desejo esse que, numa
dimensão de fé, pode-se dizer desejo por Deus.
Como
bem caracterizou Melo, “o pensamento levinasiano se desenvolve como um
movimento de um peregrino nômade que, em constante movimento, faz da existência
do sujeito um êxodo, uma saída sem retorno”.[5]
O caminho que Lévinas traça é o itinerário abraâmico. É o Abraão que, respondendo à interpelação do
Outro, deixa sua terra e parte para o desconhecido. É partida sem retorno. O
ser humano levinasiano “exige que o eu abandone o seu lugar privilegiado e se
torne responsável, servidor, incapaz de matar ou de reduzir o outro num
conceito”.[6]
Se a
epopéia abraâmica se constitui na metáfora que caracteriza o pensamento de
Lévinas, por outro lado, Ulisses, o personagem central da Odisséia de Homero, é
o modelo por excelência do pensamento cristalizado no mundo ocidental. A ânsia
pela conquista, dominação, heroicidade movem Ulisses para singrar os mares. “A
sua meta é retornar para a sua pátria, reencontrar a si mesmo, sua família, seu
reino. Seu supremo desejo é realizado com a sua volta”.[7]
Em Ulisses, o herói grego, o conceito de totalidade encontra sua
personificação: um eu fechado, dominador, absoluto, conquistador, narcísico,
enfim, um eu que nega a alteridade e que está numa desenfreada busca pelo
eterno retorno do mesmo. Mesmidade, imanência, ontologia são outros termos
utilizados por Lévinas para indicar a idéia de totalidade. A desenfreada busca
pela totalidade se constitui na origem da violência humana.
É
para indicar a ruptura da totalidade que Lévinas propõe o conceito de infinito.
O rosto do outro se manifesta como infinito, isto é, como mistério impossível
de ser abarcado em conceitos fechados. Ao contrário de um “eu ulissiano”, que
deseja se apossar do outro, é um “eu abraâmico” que responde à convocação
através dum “eis-me aqui!”. Para Lévinas, o outro pode ser tanto o rosto humano
como o rosto divino. Não importa. O decisivo é o eu que transcende e acolhe o
rosto do outro numa atitude de respeito e responsabilidade. É uma relação que
não se dá no mero conhecimento, mas na proximidade, na abertura ao rosto do
outro. O rosto do outro é apelo, chamado, vocação.
O outro, para
Lévinas, não é uma abstração, mas será positivamente e concretamente outro. E
por este outro, sou responsável. Diante do rosto do outro, não há como fugir da
responsabilidade de manifestar-lhe uma resposta. Mesmo que seja na tentativa de
tapar os ouvidos ao clamor que brota desse outro, essa negação já é uma
resposta. No encontro com o próximo não é possível ser neutro. Evocando
Dostoievski, que diz que “cada um de nós é culpado diante de todos por tudo e
eu mais que os outros”,[8]
Lévinas afirma a idéia de que diante do próximo sou ilimitadamente responsável.
É uma responsabilidade pela qual não tenho desculpas e é “anterior à minha liberdade”.[9] Assim, a ética da alteridade
levinasiana tem seu sentido e significado na epifania do rosto, que se
manifesta com toda a sua nudez no pobre, no órfão, na viúva, no estrangeiro.
A nudez
humana interpela-me – interpela o eu que sou – interpela-me por sua fraqueza,
sem proteção e defesa, por sua nudez; mas interpela-me também por estranha
autoridade, imperativa e desarmada, palavra de Deus e verbo no rosto humano
[...] origem do valor de do bem, idéia da ordem humana na ordem dada ao humano.
Linguagem do inaudível, linguagem do inaudito, linguagem do não-dito.
Escritura.[10]
Na epifania
do rosto, há algo de misterioso e de profundo que é anterior ao conceito, à
lógica, à teologia. O ser humano, na
concepção levinasiana, é vocacionado a ser responsável pelo outro: “Responder ao
amor de Deus [...] quer dizer responder pelo outro que Deus me confia”.[11] Portanto, na contramão do pensamento
Ocidental que concebe uma antropologia alicerçada no paradigma da conquista ou
da competição, Lévinas propõe, a partir de sua leitura bíblica, uma outra
maneira de ver a humanidade: o ser humano aberto ao encontro com o outro.
O
outro como meu mestre
O núcleo central do pensamento levinasiano é
a relação inter-humana, entendida como relação ética. Levinas entende que o ser
humano se descobre como pessoa na medida em que ele se abre para a dimensão da
alteridade. Acolher a interpelação do outro, que se revela de modo especial no
rosto do estrangeiro, da viúva e do órfão, é viver um processo de humanização e
de abertura ao mistério do Infinito.
Para Levinas, antes de qualquer discurso,
seja ele ontológico ou teológico, há a revelação do Outro. A ética nada mais é
que atitude de abertura ao outro. Diante do outro, que se manifesta no rosto,
sou convocado a me abrir para um mistério infindável. Porque o outro é sempre
uma realidade infinita. A presença do outro me instiga a assumir uma
responsabilidade que ultrapassa uma atitude de mera interpretação e tentativa
de significação de tal presença.
O outro é o lugar sagrado diante do qual devo
tirar as sandálias, despojando-me de toda armadura que pode escamotear um
verdadeiro encontro com o outro. Estar diante do outro, num sentido ético, é
simplesmente encontrar-me frente ao rosto do outro, sem pretensão de síntese,
mas respeito à transcendência do outro.
O
protesto levinasiano não é do tipo niilista que se resignaria à fatalidade. Ao
contrário de uma filosofia nietzschiana da proclamação da morte de Deus ou de
uma ontologia heideggeriana que anuncia que homem é um ser para a morte, Levinas
assume uma compreensão antropológica aberta para outras possibilidades. No
rastro de uma história humana que também se proclama santa, Levinas se coloca
numa atitude de que “não basta ser contra, é preciso estar a serviço de uma
causa” (levinas, 2001, p. 42) e
anuncia o humanismo do outro homem.
A partir da ética da alteridade, pode-se
inferir que o encontro com o outro implica uma relação baseada no respeito ao
diferente. A ética levinasiana demanda uma relação face a face, sem
intermediações ou rodeios. O rosto do outro se manifesta na palavra. Ou seja, a
linguagem está intimamente implicada na alteridade. Desse modo, acolher o outro
de frente, no discurso, é fazer-lhe justiça. A ética da alteridade se revela
numa relação de aprendizagem em que o outro é acolhido enquanto sujeito. Não é
uma relação que se faz na intenção de sobrepujar, dominar, controlar o outro.
Por isso, diz Levinas, “a relação com o rosto não é conhecimento de objeto”. (levinas, 2000, p. 62).
Por outro lado, diz Levinas, “nem todo o
discurso é relação com a exterioridade” (levinas,
2000, p. 53). Há discursos que falseiam a relação. Trata-se
de retóricas que se utilizam de artimanhas a fim de ludibriar o outro. A
propaganda, a lisonja, a diplomacia são citados pelo autor como exemplos de
artifícios utilizados por uma retórica do convencimento. E a pedagogia, segundo
Levinas, à medida que “aborda o Outro não de frente, mas de viés” (2000, p. 57),
inclui-se numa dinâmica ardilosa. Nesse sentido, é uma pedagogia injusta e
violenta. Por isso, “renunciar à psicagogia [sic], à demagogia, à pedagogia que
a retórica comporta, é abordar outrem de frente, num verdadeiro discurso”.
(2000, p. 57).
Acolher o outro que me dirige a palavra numa
relação face a face, sem mediações, é recebê-lo como meu mestre. É uma relação
não alérgica, que não transforma o outro em objeto manipulável. Levinas entende
que o conhecimento acontece numa relação de mestre e discípulo entre o outro e
eu. Assim, não é no discurso impessoal,
numa mera contemplação do verdadeiro, que se estabelece o processo de
conhecimento. É na experiência vivida com o outro, frente a frente, que a
verdade se estabelece como discurso e justiça.
No encontro com o outro que se estabelece
como desejo e linguagem, o conhecimento se faz como pronúncia do mundo. Nesse
sentido, Levinas expressa que “a
realização com outrem não se dá fora do mundo, mas põe em questão o mundo
possuído. A relação com outrem, a transcendência, consiste em dizer o mundo a
Outrem. [...] A generalidade da palavra instaura um mundo comum.” (levinas, 2000, p. 155). A linguagem permite por em comum, numa oferta
generosa, um mundo até então meu. E mais do que pôr em comum algo já pronto, o
encontro com o outro na linguagem é criação de um mundo que se torna comunhão.
A condição de possibilidade para que se
estabeleça o processo de conhecimento é o outro que se apresenta como
linguagem. A pergunta pelo mundo se dirige a um rosto, numa interação face a
face. A palavra, que não se reduz a signo, expressa-se como ensinamento. Em
outras palavras, a linguagem que emana do rosto do outro é ensino. Ensinar,
para Levinas, não é dominação, nem conquista. Não é um processo que se dá ao
estilo de uma pedagogia socrática. O ensino do outro não é uma espécie de ajuda
maiêutica que seduz o eu a fechar-se em sua interioridade. “O ensino não é uma
espécie de um gênero chamado dominação, uma hegemonia que se joga no seio de
uma totalidade, mas a presença do infinito que faz saltar o círculo fechado da
totalidade”. (levinas, 2000, p.
153).
O ensino se afirma na manifestação da
exterioridade do outro. O encontro do discípulo com o mestre não é uma
simbiose. Mas é uma relação assimétrica em que o outro me interpela e me
ensina. Na alteridade, o conhecimento
primordial se constitui na abertura para o outro, isto é, um ensinamento que se
processa enquanto relação ética. Em
outras palavras, a ética, como abertura para a alteridade, acontece numa
relação de aprendizagem.
A ética da alteridade se revela uma pedagogia
da escuta da palavra do outro. Palavra que se faz também no silêncio. O
silêncio do outro não significa necessariamente ausência de palavras. Num
sentido metafórico, “[...] a palavra está no fundo do silêncio como um riso
perfidamente contido” (levinas,
2000, p. 78). Por conseguinte, o silêncio é uma palavra que assusta, mas que
também me interpela e me ensina.
Numa expressão de Chalier, pode-se dizer que
a pedagogia levinasiana é uma “pedagogia do exílio” (Chalier, 1993, p. 105). À medida que a relação inter-humana é
concebida numa perspectiva heterônoma, onde a alteridade não é reduzida aos
parâmetros de um eu solipsista, o eu é interpelado a sair de sua casa para ir
ao encontro do outro. O outro, enquanto meu mestre, inquieta-me, tira-me do
sossego. Sou, enfim, instigado a sair da minha terra e das minhas raízes para
pôr-me ao caminho e à disposição da alteridade que se manifesta. A pedagogia do
exílio ensina que o humanismo do outro homem se revela no respeito pelas
diferenças, na hospitalidade e acolhida ao outro, no reconhecimento da
dignidade dos injustiçados, na solidariedade com os que mais sofrem.
O pensamento levinasiano faz ressoar a
pergunta pelo lugar do outro enquanto educando. Indagar-se pelo rosto da
criança ou do jovem é perguntar-se pela própria possibilidade de um mundo a ser
construído nas bases da justiça, da esperança, da vida que não se deixa
esmorecer diante das tragédias humanas. Em um de seus comentários talmúdicos – Juventude de Israel (levinas, 2001, p. 59-88) –, Levinas
fala de modo específico sobre a juventude. Ao mesmo tempo em que não aceita e
denúncia as ideologias que se utilizam da juventude como massa de manobra, Levinas
percebe nela um jeito novo de caminhar. A resistência e a coragem denotam que
na dinâmica da juventude se expressa uma inquietude diante das injustiças
sociais. Nas palavras do pensador lituano-francês emerge a idéia de que é
preciso acolher os jovens como sujeitos de sua história. No rosto da juventude
brota a novidade e a esperança de um mundo mais justo e humano.
A ética da alteridade proclama uma pedagogia
do cuidado, da acolhida, da hospitalidade, da ternura. Diferente do
cuidado de si heideggeriano, o cuidado de Levinas se expressa como preocupação
pela felicidade do outro. Num contexto de mundo marcado por situações de
violência, indiferença, descriminação, percebe-se que a humanidade ainda não
aprendeu a ser responsável pelo outro. Assim, uma pedagogia da alteridade se
constitui no desafio de acordar em cada pessoa o desejo pelo bem do outro e do
cuidado para com o outro. Um desejo que extrapola a mera preocupação pela
satisfação das necessidades pessoais.
Ao
contrário de Sartre que via no outro o inferno do eu, Levinas afirma a abertura
para a alteridade como princípio de humanização. O rosto do outro que se
apresenta existencialmente ao eu como epifania é expressão do significado da
própria vida humana. Ao invés dos axiomas ‘eu sou’ ou ‘penso logo existo’, a
ética da alteridade afirma o ‘eis-me aqui’ como palavra de uma vida que se
revela em mais vida. A vida se revela no seu significado mais pleno à medida que
a alteridade é internalizada na dinâmica humana. A educação, independente do
espaço em que ela ocorre (escola, família, grupos sociais etc.), revela-se um
instrumento imprescindível para fomentar no coração de cada pessoa a
sensibilidade desejosa pelo bem do outro.
A
ética da alteridade ensina que o sujeito não se liberta sozinho, mas na
contínua abertura e acolhida ao outro. A atitude que humaniza e faz o ser
humano mais feliz é a assunção da responsabilidade pela felicidade do outro.
Assim sendo, entende-se que o pensamento levinasiano se constitui num horizonte
a partir do qual a práxis educativa é interpelada a assumir processos de
libertação. Afinal, qual é o lugar do
outro nos processos educativos? É a indagação que emerge da ética da alteridade
levinasiana.
referências
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Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
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CHALIER, Catherine. Levinas: a utopia do humano. Lisboa: Instituto Piaget, 1993,185 p.
COSTA,
Márcio Luis. Levinas: uma introdução.
Tradução por J. Thomaz Filho. Petrópolis: Vozes, 2000.
DERRIDA, Jacques. Adeus
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FREIRE, Paulo. Pedagogia
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Tradução por Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
_____. Totalidade
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MCCHESNEY, Robert. Introdução In. CHOMSKY, Noam. O lucro ou as pessoas? Neoliberalismo e
ordem global. Tradução por Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
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RUBIO,
Alfonso García. Unidade na pluralidade.
2 ed. São Paulo: Paulinas, 1989.
[1]
Êxodo 22,20-22.
[2] Levinas,
Emmanuel. Do outro modo que ser: o
más allá de la esencia. Tradução para o espanhol de Antonio Pintor Ramos. Salamanca: Sígueme, 2003,
p. 56. “No es necesario pensar al hombre
em función del ser y del no-ser, entendidos como referencias últimas. […] A ruptura
de la esencia es ética.”
[3] Dussel, Enrique. Método para uma
Filosofia da Libertação: superação analética da dialética hegeliana. São
Paulo: Loyola, 1986, p. 187.
[4]
MELO, Nélio Vieira de. A ética da
alteridade em
Emmanuel Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p. 22.
[5] Melo, 2003, p. 119.
[6] Melo, 2003, p. 18.
[7] Melo, 2003, p. 57.
[8] dostoiévski, Fiódor M. Os irmãos Karamázovi. São Paulo: Abril
Cultural, 1971, p. 212.
[9] Lévinas, Emmanuel. De Deus que vem a idéia. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 219.
[10] Lévinas, 1997, p. 283.
[11] Sante, Carmine di. Responsabilidade: o eu – para – o outro. São Paulo: Paulus. 2005,
p. 57.
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