Artigo publicado originariamente em Revista Atitude n. 12 (Fac. Dom Bosco)
Resumo: A partir do conceito de alteridade, o qual se ancora no pensamento de Emmanuel Lévinas, o artigo tece uma reflexão crítica sobre a cultura de consumo, apontado decorrências para a juventude. Dentre as consequências da lógica consumista, está o aumento da violência que solapa sobremaneira a vida de muitos jovens. Trata-se, com efeito, discutir a sociedade contemporânea alicerçada na lógica de mercado, em que tudo é transformado em mercadoria, inclusive as pessoas. E os jovens são aqueles que sofrem de forma mais dura essa realidade, impondo-se sobre eles inúmeras situações de exclusão e violência.
Palavras-chave: Juventude. Alteridade. Cultura de consumo. Violência.
A motivação principal deste texto tem como ponto de partida o grito que brota do rosto da juventude brasileira: “a juventude quer viver: chega de violência e extermínio de jovens!” Trata-se do clamor que nasce da realidade que faz dos jovens as principais vítimas de uma sociedade produtora de altos índices de violência e homicídios. E esse grito, desde 2008, foi explicitado e articulado pelas Pastorais da Juventude do Brasil que, a partir da Campanha Nacional contra a Violência e Extermínio de Jovens, procura promover uma cultura de paz.
Esse grito da juventude testemunha e ecoa uma realidade em que cresce sobremaneira a taxa de morbimortalidade dos jovens por homicídio. De fato, conforme o Mapa da Violência 2011: os jovens do Brasil, um estudo baseado em dados do Ministério da Saúde e coordenado pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz (2011, p. 154), “se em 1998 a taxa de homicídios de jovens era 232% maior que a taxa de homicídios da população não jovem (menos de 15 e mais de 24 anos de idade), em 2008 as taxas juvenis já são 258% maiores”.
A violência é um fenômeno complexo, sendo suas causas múltiplas. Entretanto, não há como desconectá-la com as questões sociais, econômicas, e culturais hodiernas. Dentre os aspectos intervenientes, conforme pretendo explicitar ao logo do presente artigo, está a cultura de consumo que tem se fortalecido a partir da sociedade de mercado (capitalismo neoliberal). Trata-se do contexto, denunciado por Zygmunt Bauman, em que o lucro se apresenta como critério de valoração dos seres humanos. Os que não conseguem se incluir na lógica consumista, são descartados como inutilidades – são consumidores ‘falhos’. Ou seja, “só como mercadorias, só se forem capazes de demonstrar seu próprio valor de uso, é que os consumidores podem ter acesso à vida de consumo” (BAUMAN, 2007, p. 12).
Os ‘descartáveis’ da cultura de consumo não são apenas números que compõem estatísticas. A ‘massa sobrante’, muito mais que uma metáfora para indicar um grande número de pessoas, é formada por sujeitos que vivem num determinado contexto e sofrem as consequências da lógica que a sociedade neoliberal impõe. E os jovens são os que sofrem de forma mais dura essa realidade. Por isso, acolhendo e repercutindo a metáfora de Jorge Boran (2000, p. 61), se for verdade que “a juventude é como um sismógrafo: alerta-nos sobre a aproximação de terremotos”, então o outro que surge como um próximo eminente e como questão reflexiva, na sociedade do descartável, é o rosto dos jovens. De forma mais precisa, qual é o lugar dos jovens na sociedade de consumo?
Assim sendo, ao propor a relação entre alteridade e juventude como temática deste artigo, pretendo explicitar a tese que a cultura de consumo, constitui-se numa cultura de interdição e de violência da alteridade encarnada no rosto juvenil. Com efeito, parece-me que a sociedade, de modo geral, sempre teve difivuldade em acolher, de forma hospitaleira, a juventude como alteridade. No dizer de Hilário Dick, na história da civilização ocidental, “a adolescência e a juventude aparecem, na história, como uma fase de subordinação, de marginalização, de limitação dos direitos e dos recursos, como incapacidade de agir como adultos [...]” (DICK, 2003, p. 19). E, no atual período da história, com o evento da sociedade de consumo, há um recrudescer da interdição do Outro enquanto juventude, que se traduz em violência e morte.
A alteridade, mais do que um conceito, indica o horizonte a partir do qual pretendo conduzir a reflexão. Trata-se de um pensamento que se ancora na filosofia de Emmanuel Lévinas (1906-1995), filósofo judeu franco-lituano, que traz a ética da alteridade em seu bojo reflexivo. Diferente de uma visão antropológica centrada na ideia de que o ser humano é condenado a viver sob a lógica da competição, da conquista, da artimanha, necessitando de força bruta para se afirmar, Lévinas propõe a concepção de que o humano se constrói à medida que se abre à humanidade do outro, do próximo.[2] Trazendo para o contexto deste artigo, entendo que o conceito de alteridade faz ressoar a pergunta pelo lugar do outro enquanto juventude e, nessa perspectiva, o pensamento levinasiano se apresenta como pertinente.
Muitos estudos distinguem adolescência de juventude. Não será o caso aqui. Como referência, utilizo a pesquisa Retratos da Juventude Brasileira: análises de uma pesquisa nacional, desenvolvida pelo Instituto Cidadania – Projeto Juventude (ABRAMO; BRANCO, 2005) –, que enfocou jovens brasileiros de 15 a 24 anos. Outra observação conceitual, mesmo que se fale em juventude no singular, entendo que não há apenas um rosto ou um perfil de juventude. Tendo presente a multiplicidade de contextos sociais, múltiplas também são as feições da juventude. Por fim, ao falar de juventude não estou me referindo apenas a uma idade da vida, mas a uma construção social, fruto da própria modernidade. Ou seja, concordando com Dick (2003, p. 31), na história, “os jovens sempre existiram mas, como ‘juventude’, são bem recentes”.
O texto se desenvolve em três sessões: na primeira parte, apresento e desenvolvo a noção de cultura de consumo e a inserção da juventude na dinâmica de mercado. No segundo momento, o enfoque é a estética juvenil globalizada, ou seja, realço a característica da juventude desejada pela cultura de consumo, em que os jovens são apresentados como marca ou produto consumível. Por fim, como decorrência dos dois primeiros pontos, procuro demonstrar que, dentre as principais consequências, está a cultura de violência que se impõe sobretudo aos jovens.
A sociedade de consumo e o ofuscamento do rosto da juventude
Leonardo Boff (2002, p. 13) expressa que “hoje vivemos uma crise dos fundamentos de nossa convivência pessoal, nacional e mundial”. Trata-se de um, o momento crítico que reflete o esgotamento do paradigma da modernidade. As contínuas guerras, o empobrecimento dos povos, a destruição do meio ambiente, os conflitos étnicos, o esfacelamento das relações inter-humanas, assim por diante, resultam do projeto que foi gestado pela sociedade moderna. Diante das catástrofes que a sociedade industrial protagonizou em nome de uma racionalidade moderna, o ser humano deparou-se com uma situação inusitada: ao invés do ‘paraíso’ terrestre, deparou-se com a real ameaça da extinção da vida humana e do planeta como um todo. Diante dessa crise da civilização ocidental,
Considera-se, segundo David Lyon (1998, p. 16), a queda do Muro de Berlin, em 1989, como o fato simbólico que marcaria a passagem, de forma mais incisiva, da cultura moderna para a pós-moderna. Entretanto, muito mais que significar um rompimento radical com a modernidade, concordando com Boff (2000, p. 25), compreendo que a pós-modernidade indica “o último e mais refinado travestimento da cultura capitalista com sua ideologia consumista”. O mundo pós-moderno expressa um novo momento do capitalismo em que o ideal do consumo se interpõe como valor da sociedade. Do capitalismo liberal se passou para o capitalismo neoliberal.
Porém, para que se possa compreender esse fenômeno, concordando com Jurandir Costa (2004, p. 78), não se pode perder de vista o que significa consumo: “é uma metáfora que alude à rapidez com que adquirimos novos objetos e inutilizamos os velhos. Ou seja, tratamos os objetos industriais como tratamos substâncias que se prestam à reprodução dos ciclos biológicos [...]”. E para que essa dinâmica funcione, é preciso que o sujeito esteja convencido da necessidade de adquirir os novos produtos lançados no mercado.
Portanto, o ato de comprar não é a mesma coisa que o processo de consumir. A compra de uma mercadoria não é uma ação determinada por uma necessidade físico-natural, “mas é um ato econômico com implicações sociais”. O que significa dizer que a aquisição de mercadorias implica na condição dos sujeitos de comprarem ou não. E a condição é o dinheiro. Por conseguinte, “a maior parte da população tem um poder de compra extremamente reduzido e alguns, para possuir o que desejam, roubam e furtam” (COSTA, 2004, p. 77).
A compreensão da cultura de consumo implica na percepção que se trata de um mecanismo ideológico da lógica capitalista contemporânea. O consumismo é, na verdade, “o modo que o imaginário econômico encontrou de se legitimar culturalmente, apresentando mercadorias como objetos de necessidades supostamente universais e pré-culturais”. E por esse caminho, “as desigualdades econômico-sociais entre os potenciais compradores” são escamoteadas” (COSTA, 2004, p. 77).
Num contexto de efervescência e de transformação que vem sendo protagonizada pela humanidade contemporânea, sobretudo a partir da dinâmica consumista, ao enfocar um olhar mais particularizado para o contexto da juventude, entendo que as gerações mais jovens são mais sensíveis ao que vem acontecendo. À medida que não são mais crianças e, ao mesmo tempo, encaminham-se para a vida adulta, os jovens vivem um momento importante no desenvolvimento humano. Os jovens, pelas características que lhes são próprias, são mais flexíveis e abertos às novidades.
Olhar para a cultura juvenil, significa descobrir que há na juventude tanto expressões de contestação como posicionamentos conservadores ou alinhados à cultura dominante. Por exemplo, se num determinado momento o movimento punk representou uma manifestação juvenil contra as guerras, o capitalismo neoliberal e suas consequências, as ‘patricinhas’ e os ‘mauricinhos’ simbolizam toda uma ‘onda juvenil’ narcisista cooptada pela sociedade de consumo. Vale lembrar também os diversos grupos neonazistas da Europa e Estados Unidos os quais, em sua maioria, são movimentos juvenis reacionários.
As diversas percepções ou olhares sobre o fenômeno juvenil indicam que a sociedade, de um modo geral, não quer acolher os jovens enquanto alteridades, isto é, como sujeitos que participam ativamente dessa mesma sociedade. Analisando a sociedade de mercado, percebe-se justamente outra tendência. Normalmente, sempre que os jovens se têm manifestado de forma contestatória diante dos valores apregoados pelo capitalismo neoliberal, a ‘indústria cultural’ se mostrou extremamente perspicaz em cooptar a juventude.
A impressão que se tem é que na lógica consumista, nada fica de fora. Inclusive a vivência em grupo que se trata de uma experiência marcante sobretudo para os jovens, é percebida como nicho mercadológico ou meio de propagação da ideologia de consumo. De fato, a cultura de mercado não está preocupada em formar grupos que possam abrir “espaço para uma participação ativa, oferecendo âmbitos para discutir, avaliar, orientar-se mutuamente e lutar por ideais relevantes para a própria pessoa” (DAUNIS, 2000, p. 160). Os espaços grupais como lugares vitais para a juventude, com efeito, são poucos:
Para os grupos de jovens não é sempre fácil achar lugares adequados de encontro (‘espaços vitais). No Brasil, um país de clima (sub) tropical, onde os jovens podem permanecer nas ruas, existem problemas sérios de segurança e perigos gravíssimos. [...] Os adultos, muitas vezes não têm vontade ou condições de arrumar espaços úteis. Como pontos de referência para a movimentação, flutuação e ‘ocupação dos adolescentes servem os vestíbulos dos supermercados e dos cinemas, as lojas de discos e fitas, os restaurantes e bares das escolas, alguns restaurantes tipo McDonald’s, lanchonetes, sorveterias e discotecas que cultivam o estilo juvenil; também as ruas e praças perto das escolas e parques, as estações ferroviárias e rodoviárias. Aliás, são esses lugares junto às escolas e universidades os centros prediletos para o tráfico ou consumo de drogas (DAUNIS, 2000, p. 125).
Levando em conta que os grupos juvenis são espaços vitais para a formação dos jovens, defrontamo-nos com um contexto social que não favorece a formação de grupos efetivamente construtivos. A sociedade tecnológica contemporânea concedeu à humanidade, ou parte dela, um elevado nível de satisfação. Em compensação, despojou-a da capacidade de se relacionar, de interagir com os outros, da sensibilidade poética e lúdica, da liberdade de pensamento e consciência. As pessoas são induzidas à ideia de que a realização humana depende do nível de consumo que consegue alcançar. O ser humano da sociedade hodierna vive uma contradição absurda: a sensação paradoxal de liberdade onde não existe liberdade.
A estética juvenil
O perfil de cidadão consumista que a mídia induz como sendo um sujeito plenamente realizado, além de estar muito aquém de uma grande maioria de ‘consumidores falhos’, a promessa parece ilusória mesmo para os ‘consumidores privilegiados’. Para estes, que vivem obcecada e deleitosamente uma vida narcisista, a síndrome consumista soçobra qualquer ponto que indique durabilidade. E nessa lógica de voracidade, a juventude está inserida de forma contundente. Apesar de toda excitação social em que os jovens estão envoltos, a sensação é, na verdade, uma vida vivida na solidão.
O poder de consumo se tranformou em atributo de inclusão e de reconhecimento. Nessa dinâmica, os jovens são envolvidos de forma incisiva. O capitalismo neoliberal, através de um consistente aparato midiático, transformou os jovens (adolescentes) em verdadeiros modelos de consumo. Esse fenômeno é descrito por Carmen Silveira Oliveira como estética juvenil globalizada na qual “a adolescência virou um ideal social, onde tanto as crianças quanto os adultos, desejam ser adolescentes”. Assim, continua a autora, “isto pode surpreender ao jovem que, em resposta à sua indagação sobre ‘o que os outros esperam de mim?’, acaba descobrindo que este ideal é ele mesmo” (OLIVEIRA, 2001, p. 38).
A indústria cultural e a publicidade não deixam a juventude expressar seu dizer, pois, de acordo com Carmo (2001, p. 206), o desejo dos jovens de diferenciar-se da sociedade que está posta, “[...] acaba caindo muitas vezes em estilos padronizados em que conduta, roupa, expressão, tudo leva a uma camisa-de-força, que não permite escapar do padrão de comportamento imposto pelo grupo ou daquele que o sistema das modas lhe inculca”. Por outro lado, essa mesma sociedade de mercado, mediante uma parafernália midiática, tece no imaginário das pessoas que ser feliz é viver o mundo entorpecente das grifes efêmeras, espécie de paraíso habitado por celebridades esteticamente produzidas à imagem e semelhança do deus Moloc, o deus do dinheiro, do lucro.
Na onda do descartável, os jovens também são descartáveis. Nesse sentido, Oliveira (2001, p. 31) compreende “que o mal-estar dos jovens brasileiros e que os leva à conduta delitiva está relacionado à intensidade e até mesmo à violência com que se dá o processo de esgarçamento da busca de reconhecimento e de autonomia”. Não é gratuito o que vem acontecendo no caso do Brasil. No dizer da autora,
É assim que o Brasil em tempos de globalização tornou-se uma sociedade embrutecedora, tanto por produzir a impotência quanto a onipotência como respostas diante da desestabilização. Cristalizam-se, em todos os segmentos sociais, a lei do sucesso a qualquer preço e sem limites. Isto ocorre para deixar as novas gerações com um sensação de descartabilidade, que leva os jovens a uma experiência intensa de investimento absoluto no presente, de transposição de limites e quebra de normas, tornando a violência infanto-juvenil um sintoma, acima de tudo, social. Uma evidência da fragilidade dos pactos sociais (OLIVEIRA, 2001, p. 238).
O apetite consumista é constantemente excitado para buscar viver intensamente novas emoções. O último produto da moda, um carro, um calçado etc., assim que forem adquiridos, já não são mais os últimos e, sem demora, são transformados em inutilidades, isto é, lixos. A onda do descartável dita o ritmo da vida cotidiana. Os arautos da sociedade de consumo constroem todo um aparato de sedução que deve ser constante. A sedução, consequentemente, torna-se um meio de controle e de integração social.
A participação da estética globalizada, isto é, da imagem de ‘cidadão’ consumista que a mídia faz a juventude idealizar, cria em realidades de exclusão social, como no caso do Brasil, disparates que desencadeiam todo um processo de desintegração social, inclusive uma cultura de violência. Nesse sentido, o estudo de Oliveira, tendo como ponto de partida o verdadeiro calvário que muitos jovens brasileiros vivem, é elucidador. Diz ela:
De um lado, temos uma minoria de brasileiros que ‘tão podendo’e para quem ‘nada na vida é pior do que ser comum’, como diz uma adolescente, personagem do filme Beleza Americana. Para essas pessoas, o habitat tomado como referência é a Ilha de Caras (no caso dos adultos) e o Planeta da Xuxa (em se tratando dos adolescentes), paradisíacos modos de existência, afinados com a premissa, também definida naquele filme, de que ‘para ter sucesso é preciso projetar uma imagem de sucesso o tempo todo’ (OLIVEIRA, 2001, p. 39).
Em contrapartida,
De outro lado, existe a grande maioria de jovens (constituída de negros, pardos e pobres), que tem menos chances de se reconhecer nesses padrões. Neste caso, tais referentes acabam se constituindo em novas formas de exclusão social, especialmente num país onde a miséria e as desigualdades cavam fossos quase intransponíveis até mesmo para o acesso aos direitos básicos de sobrevivência. O que dizer, então, das chances de partilhar esta estética globalizada (OLIVEIRA, 2001, p. 39).
Ao mesmo tempo em que o jovem não é acolhido como alguém que é sujeito e alteridade, há nele como que uma idealização social, ou seja, trata-se de uma imagem ‘fetichizada’ da juventude esteticamente produzida como modelo de consumo. Conforme Oliveira (2001, p. 33), “uma das principais dificuldades que o adolescente enfrenta se relaciona às indefinições sobre o seu próprio lugar como sujeito”. O fato de o jovem se situar entre as fases da criança e do adulto o faz se sentir numa situação de estar sem-lugar. Ainda segundo a autora, “esta indecisão subjetiva se faz acompanhar de uma incerteza social, uma vez que, dependendo das circunstâncias, a família e as instituições reconhecem o adolescente ora como criança, ora como adulto.” Ora, é próprio também do jovem buscar ser reconhecido e acolhido enquanto sujeito. A pergunta sobre o que a família, os amigos, a sociedade esperam dele, faz o jovem buscar todos os meios para poder corresponder às expectativas.
A busca pela afirmação da autonomia, enquanto sujeito capaz de dizer sua palavra, expressar sua ideia, é outra característica marcante na juventude. “A autonomia pessoal denota a capacidade e possibilidade de alguém para determinar o próprio comportamento de forma que acha adequada, útil e conveniente segundo o seu jeito de viver e agir” (DAUNIS, 2001, p. 63). Nesse sentido, autonomia não significa arbitrariedade, mas afirmação da própria identidade do sujeito que se abre para o outro, estabelecendo uma relação de interdependência. No caso dos jovens, “o que muitas vezes é confundido como rebeldia, é apenas uma nova habilidade que permite ao adolescente maior independência no plano das ideias” (OLIVEIRA, 2001, p. 33).
O reconhecimento enquanto sujeito e o desenvolvimento da autonomia são dois vetores presentes na vida do adolescente que a sociedade de consumo solapa. Na sociedade de mercado, o reconhecimento procurado pelo jovem, apresenta-se justamente pela ostentação de consumo. Ora, num tempo, como o nosso, pautado pela cultura e consumo, em que tudo parece volatilizável e as pessoas se sentem como que desamparadas num frenesi social, são os jovens que vivem com maior intensidade esse estado de confusão.
Por outro lado, a autonomia que a sociedade de consumo cultiva é uma autonomia vigiada – o ‘big brother’ midiático. Em tempos de capitalismo narcisista, a sociedade de consumo perpassa a ideia de que a autonomia significa viver cada um por si, aproveitando ao máximo os produtos que o mercado tem para oferecer. Daí o hedonismo e a permissividade tão presentes na sociedade e que os jovens acabam assimilando. Não se trata de uma autonomia em que a juventude é incentivada a participar da vida pública, buscando contribuir positivamente na construção de uma sociedade mais humana. No dizer de Oliveira (2001, p. 79), “o sentido de autonomia que é estimulado em uma cultura narcísica está prioritariamente vinculado a uma conduta de desimpedimento e descompromisso social”.
O holocausto da juventude ao ‘deus’ mercado
Dentre os frutos do capitalismo neoliberal está a cultura de consumo, que se apresenta extremamente narcisista e individualista. Ora, é para essa cultura que os jovens são estimulados a viver. Por outro lado, há nos jovens um intenso desejo de serem reconhecidos como sujeitos. Essa ambiguidade gera todo um mal-estar que estimula a delinquência e outras formas de exasperação da juventude. No dizer de Olivera (2001, p. 56), “o delinquente juvenil é um adolescente desalojado que busca o reconhecimento”. O envolvimento em crimes hediondos ou em pequenos delitos, a imprudência no trânsito, os esportes radicais, a xenofobia, a drogadição, a promiscuidade e falta de prevenção nas relações sexuais, assim por diante, expressam uma exacerbada busca de auto-afirmação narcísica, acompanhada de uma total indiferença pelo outro.
A ausência de oportunidades, isto é, políticas públicas voltadas para a juventude, principalmente nas áreas de trabalho e educação, propiciam o ingresso de muitos jovens no mundo do crime. Luseni Aquino e Enid Rocha, pesquisadoras ligadas ao IPEA, no artigo Desigualdade social, violência e jovens no Brasil, explicitam:
Sem escola e sem trabalho, os jovens ficam mais desprotegidos e, consequentemente, mais expostos, por exemplo, à cooptação pelo crime organizado. Assim, o envolvimento com o tráfico de drogas – muitas vezes iniciado por influência do grupo de amigos mais próximo – representaria uma alternativa real de trabalho e mobilidade social para o jovem pobre, ainda que o exponha aos riscos relacionados às práticas violentas e criminosas que lhe são inerentes, seja como vítima ou como autor (AQUINO; ROCHA, 2008).
Não obstante a desigualdade social ser a principal promotora de situações de violência juvenil, é importante deixar claro que o estado de miserabilidade não é sinônimo de criminalidade. Dizer que os jovens empobrecidos estão mais expostos à violência não significa atribuir-lhes, discriminadamente, a condição de serem promotores de crimes. Seguindo esse posicionamento, Valrei Lima Silva, diretor do CRIAM – Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Menor de Bangu (RJ) é categórico: “precisamos entender que a pobreza não é sinônimo de violência ou criminalidade, mas, quando aliada à dificuldade dos governos de garantir os serviços básicos, acabam tornando os bairros mais empobrecidos e vulneráveis à criminalidade” (SILVA, 2007, p. 252).
A delinquência juvenil, atualmente, é um dos estigmas que vem sendo veementemente atribuído aos jovens pelo senso comum e pela mídia em geral, que, infelizmente, muitos dirigentes políticos e judiciários estão assumindo em seus discursos e práticas. Ligada à questão da delinquência juvenil está a da redução da maioridade penal. A utilização de mecanismos repressivos, como a ameaça de reclusão, diminuição da idade penal, repressão policial etc., são vistos como ‘as’ soluções que poriam fim ao problema da violência. “A cultura do castigo ainda parece provocar em sua maioria a sensação de dever cumprido” (SILVA, 2007, p. 252).
Constata-se que “[...] existe um verdadeiro massacre da juventude com um elevado índice de assassinatos de jovens em todo o Brasil, na faixa etária dos 15-29 anos, o que antecipa a sua morte em cerca de 28 anos” (OLIVEIRA, 2001, p. 226). Referindo-se à realidade de São Paulo, Estado com um dos maiores índices de violência no Brasil, Oliveira constata que “fazendo um cruzamento entre a quantidade de crianças e adolescentes assassinados e aqueles acusados de homicídio, verifica-se 4,60 crianças e adolescentes mortos para cada uma das vítimas produzidas pela violência infanto-juvenil” (OLIVEIRA, 2001, p. 227). Ou seja, a população jovem é muito mais vítima do que autora de atos violentos. Reforçando a tese de Oliveira, Teixeira (2007, p. 228) constata: “Os homicídios praticados por adolescentes, no Brasil, no ano de 2002, somam 1.286 e os contra adolescentes, 19.188. Os adolescentes morrem mais do que matam.” Destaca-se que nesses números não estão incluídas outras situações de violência: espancamento, trabalho infantil, exploração sexual.
Olhando para os mais recentes índices de violência e mortalidade homicida de jovens, constata-se que, de modo geral, a sociedade tem dificuldade ou não quer ouvir o clamor expresso pela juventude. De fato, o Mapa da Violência 2012: crianças e adolescentes do Brasil, organizado pelo Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos (CEBELA), evidencia altos índices de mortes juvenis no Brasil. Esse estudo, que utiliza o Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde como uma das principais fontes, para a análise dos homicídios no país, revela:
Os homicídios em geral, e os de crianças, adolescentes e jovens em particular, tem se convertido no calcanhar de Aquiles dos direitos humanos no país, por sua pesada incidência nos setores considerados vulneráveis, ou de proteção específica: crianças, adolescentes, jovens, idosos, mulheres, negros, etc. [...]. Dentre os 99 países com dados recentes nas bases estatísticas da Organização Mundial da Saúde, o Brasil, com sua taxa de 13,0 homicídios para cada 100 mil crianças e adolescentes, ocupa a 4ª posição internacional, só superada por El Salvador, Venezuela e Trinidad e Tobago. Se na faixa de 0 a 4 anos de idade, o Brasil ocupa a 23ª posição, sobe para a 13ª na faixa de 5 a 9 anos de idade. Já dos 10 aos 14 anos e dos 15 aos 19 anos o Brasil passa para a 4ª posição, revelando a gravidade de seus índices (WAISELSZ, 2012a, p. 47-61).
Se, por um lado, há um cenário que evidencia o recrudescimento da violência contra os jovens, em contrapartida, a sociedade organizada, aqui também pensada enquanto Estado, não tem dado respostas ou produzido políticas públicas que pudessem, de fato, reverter o quadro. Não apenas há um crescimento dos números da violência contra a juventude, como existe uma percepção vigente que atribui aos jovens a responsabilidade pela própria situação. Ou seja, tenta-se explicar a violência a partir da própria juventude. “Assim, violência juvenil começa a aparecer como uma categoria autoexplicativa quase universal e natural de nossa cultura globalizada quando em realidade é um fenômeno que ainda precisa ser explicado” (WAISELSZ, 2011, p. 68).
Entendo que uma leitura do fenômeno da delinquência juvenil como mera expressão de embrutecimento dos jovens é equivocada. Do mesmo modo, as retóricas que defendem a redução da maioridade penal ou outras formas de endurecimento das ações punitivas como respostas à violência juvenil são falaciosas. Tais respostas, além de demagógicas, fortalecem o estado de indiferença e de intolerância que perpassa a sociedade mercadológica. Concordando com Oliveira (2001, p. 234), “não é a lei que deva ser mudada, mas a realidade que vitimiza crianças, adolescentes e suas famílias”.
A violência juvenil é uma das expressões mais agudas que indicam o mal-estar da sociedade contemporânea neoliberal, a sociedade do espetáculo que celebra entorpecidamente a descartabilidade como signo de liberdade. Em outras palavras, na violência e no delito estão estampados gritos de desespero de uma juventude que foi alijada de sua dignidade por uma sociedade muito ocupada em obedecer aos ditames consumistas: ‘seja você mesmo – prefira produto X’. Por conseguinte,
[...] a violência e o delito na adolescência suburbana podem ser entendidos como respostas ao desprezo ou à indiferença a que estão submetidos os adolescentes moradores do outro lado da cidade e, neste caso, são manifestações de esperança, pois mesmo que seja por arrombamento, eles buscam inventar um outro espaço, outras regras de deslocamento de lugar (OLIVEIRA, 2001, p. 65).
Diante dessa realidade, o desafio que se apresenta é superar a ideia de que bastariam mais muros e aprisionamentos para afastar o problema diante dos olhos. Ao invés de criar ou reforçar estruturas narcísicas e ensimesmadas, é urgente o desenvolvimento de uma cultura em que a convivência e o aprender com o outro se constituam em paradigmas de humanização. Uma sociedade que se diz séria e deseja acolher a novidade que brota do rosto da juventude não pode permanecer indiferente a uma cultura consumista, na qual o refrão “tô nem aí” de uma cançoneta popular é ovacionado por aqueles consumidores privilegiados que vivem ou que se percebem vivendo em ‘berço esplêndido’.
À guisa de conclusão – uma pitada de responsabilidade ética
Saramago (2007, p. 241), em seu romance Ensaio sobre a cegueira, põe na fala da ‘mulher do médico’, única personagem que, numa misteriosa epidemia em que todas as pessoas de uma determinada cidade cegaram, ainda não havia perdido a capacidade de ver, o seu significado de responsabilidade: “Hoje é hoje, amanhã será amanhã, é hoje que tenho responsabilidade, não amanhã, se estiver cega, Responsabilidade de quê, A responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam [sic].” Mais que um convite, é uma convocação aos homens e mulheres que ainda têm olhos lúcidos para que assumam a responsabilidade em acolher a interpelação que brota do grito da juventude, sobretudo, da juventude marginalizada pela sociedade de mercado que clama por justiça.
A interpelação do outro que se encarna no rosto dos jovens, como diria Dick (2003), são gritos silenciados, mas evidentes. São gritos que questionam o modelo de sociedade que impera. E assim como o grito dos jovens, há tantos outros clamores que nos interpelam pela sua condição humana. Não só o humano diria Boff (2004), mas o ecossistema como um todo grita pela sua dignidade e libertação: grito da terra e grito dos pobres.
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[1] Formado em Filosofia e doutor em Teologia, na área de concentração Religião e Educação. Coordenador do Instituto Salesiano de Pesquisa sobre a Criança e o Adolescente. E-mail: insapeca.faculdade@dombosco.net.
[2] Sobre Lévinas e sua ética da alteridade, remeto o leitor ao meu livro Educar para a sabedoria do amor: a alteridade como paradigma educativo (2012).
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