quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Borderlands

"Uma fronteira é um lugar vago e indeterminado, um lugar criado pelo resíduo emocional de um limite não natural. É um constante estado de transição. O proibido e o esquecido são seus habitantes. 'Los atravesados' vivem aqui: os mal-encarados, os perversos, os esquisitos, os incômodos, os mestiços, os mulatos, os mamelucos, os semi-mortos. Em suma, aqueles que cruzam, passam pelos limites do 'normal'. (Glória Anzaldúa - Borderlands).

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Ponto e Linha - cercas e fronteiras


Fissurando pontos e linhas:

"Entre teu povo e o meu
Há um ponto e uma linha.
A linha disse: não há passagem.
O ponto, está fechada.
E assim entre todos os povos,
Linha e ponto, ponto e linha.
Com tantas linhas e tantos pontos
O mapa é um telegrama.
Caminhando pelo mundo
Se veem rios e montanhas,
Se veem selva e desertos,
Porém, não há pontos nem linhas.
Porque essas coisas não existem,
Mas foram traçadas
Para que minha fome e a tua
Permaneçam sempre separadas."

KHATIBI, Abdelkebir. Love in Two Languages (Amor bilíngue). Minneapolis: University of Minnesota, 1990, p. 73.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Justa Memória



Se a justiça dos tribunais não consegue atender à justa memória, a evocação daqueles/as que tombaram sob o peso da tirania e da indiferença, continua soando como uma responsabilidade ética. Tal como na interpelação de T. Adorno (In: Educação e emancipação) à educação, que Auschwitz não se repita, apesar das constantes frustrações, porque há reprises do totalitário, a tarefa primordial continua à luta para que não se repita a tirania de toda espécie. Aliás, um dos lamentos de Mandela (In: Conversas que eu tive comigo), no contexto sul-africano, chama a atenção para o fato de que “em geral, os professores se esquivam de temas como opressão racial, falta de oportunidades para os negros e as numerosas indignidades a que o negro é submetido na vida diária”. Com efeito, diz Mandela, “um novo mundo não será conquistado por aqueles que se mantêm a distância com os braços cruzados, mas por aqueles que estão na arena, cujas vestes estão rasgadas por tempestades e cujos corpos são mutilados no decorrer da luta”.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

As duas maneiras de viver o inferno que está entre nós (Ítalo Calvino):


“O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno,  e preservá-lo, e abrir espaço”.
(CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 150).

sábado, 16 de julho de 2016

A alma do negócio que toca os corações / Desejo mimético e culto ao mercado


A alma do negócio que toca os corações
Sabina retomará o caminho das traições e, de vez em quando, no mais fundo do seu ser, soará na insustentável leveza do ser uma ridícula canção sentimental falando de duas janelas iluminadas atrás das quais vive uma família feliz. Essa canção a toca, mas ela não leva essa emoção a sério. Sabe que a canção não passa de uma bela mentira.[1]
Os discursos que sustentam a promessa utópica da economia de livre mercado, diz Hinkelammert, “não são mais do que a ponta do iceberg desta grande utopia. Seu campo de propagação e predomínio por excelência é a propaganda comercial”.[2] É um mundo que toca o coração das pessoas, a dimensão do desejo. Porém, é um mundo que não pode e nem pretende realizar o que promete, na medida em que, para manter essa dinâmica funcionando, a convocação ao desejo do consumismo deve ser permanente.
Por um lado, como demonstra Belluzzo, citando Keynes, há um capitalismo que, “impulsionado pelo avanço tecnológico e pela rápida acumulação produtiva”, cria “as condições para a superação das limitações impostas milenarmente à satisfação das necessidades básicas”.[3] O triunfo tecnológico e a expansão da produção acenam para a possibilidade de uma vida repleta de realizações, amplia o conforto e a realização de muitas necessidades da vida. As pessoas se sentem convocadas para esse mundo de produção da abundância. É um mundo que se torna o eixo estruturador da própria existência. Por outro lado, o problema é que o mundo que convoca à produção da abundância é o mesmo mundo que é obcecado pela acumulação de riqueza – crematística. Desse modo, diz Belluzzo, “em sua maníaca obsessão pela acumulação monetária, o capitalismo cria tantos problemas quanto os que consegue resolver. A admirável ‘criatividade’ produtiva e tecnológica não consegue realizar a promessa da vida boa”.[4] A promessa, cada dia renovada, transforma-se na realidade do descartável.
A sanha pela riqueza é o ethos da sociedade aprisionada nas engrenagens de um sistema econômico que atormenta o ser humano. O livre mercado se apresenta como portador de uma promessa, a vida boa e a liberdade, mas sua realização é constantemente frustrada. “Os poderes que o convocam à produção da abundância”, diz Belluzzo, “são os mesmos que submetem as criaturas humanas ao vício do consumismo, à permanente insatisfação das necessidades ilimitadas e aos grilhões do impulso insaciável da acumulação da riqueza monetária”.[5] Há, então, uma coesão social conformada à cultura de sujeitos-consumidores, coexistindo com um certo mal-estar.
No mundo em que mandam os mercados da riqueza financeira e a concorrência entre as grandes corporações, os cidadãos estão divididos entre vencedores e perdedores. Os primeiros, ao acumular capital financeiro, gozam do ‘tempo livre’ e do ‘consumo de luxo’. Os demais se tornam dependentes crônicos da obsessão consumista e do endividamento, permanentemente ameaçados pelo desemprego e, portanto, obrigados a competir desesperadamente pela sobrevivência. Esses controles suaves foram se apoderando das mentes e das almas, mas apresentadas como a prova da soberania indivíduo-consumidor.[6]
Essa é a sociedade unidimensional, descrita por Herbert Marcuse, uma sociedade que emerge como consciência feliz e conformada à condição que o mercado impõe – imposição camuflada de promessa.  Então, elimina-se o dissenso, a capacidade de pensar criticamente. “As tendências totalitárias da sociedade unidimensional tornam ineficaz o processo tradicional de protesto. [...] ‘O povo’, anteriormente o fermento da transformação social, ‘mudou’, para se tornar o fermento da coesão social.”[7] Na sociedade de consumidores, as pessoas imaginam que vivem em estado de liberdade, quando, na verdade, prevalece uma confortável, polida, razoável e democrática não liberdade. Nesses termos, de acordo com Belluzo, “difunde-se a ideia de que a liberação das forças que impulsionam a acumulação do capital é um movimento ‘natural’ e irreversível’ em direção ao progresso e à realização da autonomia do indivíduo”.[8] Por isso, diz Marcuse, paradoxalmente, “o povo, eficientemente manipulado e organizado, é livre”.[9]
Nessa produção, de uma autonomia conformada ao mercado, está a força do aparato de convencimento. É um mundo em que, nas palavras de Maria Rita Kekl, “desejamos o que os outros desejam, ou o que nos convidam a desejar. Uma imagem publicitária eficaz deve apelar ao desejo inconsciente, ao mesmo tempo em que se oferece como objeto de satisfação”.[10] O desejo individual se harmoniza com o desejo social identificado com a sociedade de consumo. De modo que, no dizer de Boff,
O sistema do capital e do mercado conseguiu penetrar em todos os poros da subjetividade pessoal e coletiva, logrou determinar o modo de viver, de elaborar as emoções, de relacionar-se com os outros. Divulga-se o sentido de que a vida não tem sentido, se não vier dotada de símbolos de posse e de status, com certo nível de consumo de bens.[11]
De fato, para os defensores do pensamento neoliberal, como Milton Friedman, mediante a técnica do mercado, “literalmente, milhões de pessoas estão envolvidas em fornecer diariamente um ao outro o pão necessário – além dos automóveis”.[12] Ou seja, para esse economista da Escola de Chicago, não há diferença entre ter acesso ao pão e à aquisição de um automóvel. Diante desse disparate, cabe a análise de Mo Sung, segundo a qual “as teorias econômicas liberais e neoliberais e a produção das empresas privadas estão pensadas em termos de satisfação dos desejos dos consumidores. Só que estes desejos são apresentados também como necessidades, e com isso se estabelece a confusão”.[13]
Essa confusão é como que também parte de uma estratégia da própria indústria publicitária, que transforma a mercadoria em portadora de mitos. Por isso, no dizer de Hinkelammert, “a propaganda comercial não tem como impacto central a informação dos consumidores; aliás, grande parte dela não contém informação alguma. A informação que oferece é o veículo da criação de mitos utópicos”.[14] Seja numa lata de refrigerante ou num automóvel há um mundo mitificado que promete paraísos, embora resultem em insustentáveis pesadelos – um mundo vazio de sentido existencial. O medo e a insegurança que resultam desse solo movediço, transformam a vida num objeto de consumo – “vida líquida”, no dizer de Bauman. “Em vez de grandes expectativas e doces sonhos, o ‘progresso’ evoca uma insônia repleta de pesadelos de ‘ser deixados para trás’, perder o trem ou cair da janela de um veículo em rápida aceleração.”[15]
Ainda nos anos de 1950, Victor Lebow, um economista e analista de vendas norte-americano, publica um artigo em que aborda o preço da concorrência (Price Copetition in 1955), sustentando a ideia de que a economia produtiva exige fazer do consumo sua condição vital. Para tanto, é necessário “que transformemos a compra e o uso de bens em rituais, que procuremos a nossa satisfação espiritual e a satisfação do nosso desejo (ego) no consumo”. [16] A fim de que a roda da concorrência se movimente, é necessário imprimir a obsolescência, um mecanismo que faça funcionar o circuito econômico. Do pão ao automóvel, diz Lebow, “precisamos que os objetos sejam consumidos, destruídos, substituídos e descartados a um ritmo cada vez maior”.[17]
A economia da subsistência humana, em que as pessoas adquirem o necessário para viver, é substituída por uma economia da obsolescência, em que o mercado diz o que é necessário. Nessa condição, as próprias necessidades básicas são transformadas em mercadorias jogadas nas gôndolas dos supermercados, para serem disputadas no campo da sobrevivência consumista. No dizer de Bauman, põe-se à venda até mesmo a vida, na medida em que as pessoas são objetivadas e convertidas em bens mercadológicos. “Ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável”.[18]
O problema é que as pessoas se convencem de que a vida deve ser assim mesmo, não veem alternativas. Não só para obter determinada mercadoria, mas, para se tornar um produto de desejo, como se isso fosse uma chave ou um bilhete de ingresso no palco da vida, para ser consumido. Conforma-se uma concepção dominante em que o sujeito é reduzido à condição de consumidor. Este, o consumidor, passa a ser visto como modelo de um sujeito – na verdade, um pseudossujeito – a ser perquirido e desejado como sendo um produto dentre outros. “Numa sociedade de consumidores, tornar-se uma mercadoria desejável e desejada é a matéria de que são feitos os sonhos e os contos de fadas”, escreve Bauman.[19] Em outras palavras, ser consumidor significa estar incluído na condição existencial preceituada pela ordem econômica estabelecida.
Para Mo Sung, esse é um dos segredos do dinamismo que faz funcionar o sistema capitalista vigente hoje. Configura-se “a acumulação de riqueza, de mercadorias, como único ou o melhor caminho para se satisfazer o desejo de poder e de consideração alheia, o reconhecimento”.[20] Isso quer dizer que o capitalismo é, no fundo, “um sistema econômico centrado no desejo. Não no desejo de lucro dos empresários, mas fundamentalmente no desejo dos consumidores. O lucro é consequência da eficiência na satisfação dos desejos dos consumidores”.[21] Daí a força do sistema de marketing e propaganda, que é um sistema que “sabe manipular e satisfazer tão bem os desejos dos consumidores que o capitalismo e o seus defensores conseguem angariar tanto apoio”.[22]
A “sociedade do espetáculo”, expressão cunhada por Guy Debord em livro (1967) e filme (1971) homônimos, descreve uma condição social em que a vida real e as relações inter-humanas são empobrecidas e fragmentadas pela produção de imagens e superficialidades. A indústria publicitária manipula a linguagem comunicativa de tal forma que as pessoas já não são mediadas apenas pelo mundo das coisas, mas são levadas a acreditar que as imagens projetadas, um simulacro dos objetos, condizem com a própria existência real. Por isso, no dizer de Agamben, “o triunfo consumado do espetáculo” demonstra que a análise marxiana da expropriação capitalista da atividade produtiva integra, hoje, “também e sobretudo à alienação da própria linguagem, da própria natureza comunicativa do homem”.[23]
Mediante a sociedade do espetáculo, o capitalismo mexe com o desejo das pessoas. Porém, não é desejo como tal que interessa ao capital. O interesse, na verdade, centra-se no desejo de compra dos consumidores que, para tal, implica o poder de compra – ter dinheiro. E isso enseja o lucro que, ao fim e ao cabo, é o que interessa ao capital – o lucro acima de tudo. O desejo se torna demanda padronizada, pois é preciso todo mundo deseje a mesma coisa.  O padrão de consumo solicita o poder de compra. Para Mo Sung, “é como demanda que o tema do desejo entra na dinâmica da globalização econômica. Para que o sistema econômico capitalista possa se globalizar cada vez mais, é preciso que o mercado consumidor se torne cada vez mais global”.[24]
A partir de um modelo de vida idealizado, tal como o american way of life, estilo americano de viver, imprime-se um padrão de consumo a ser universalizado e, consequentemente, comercializado. Isto é, universaliza-se a compreensão de que o ideal de vida é o padrão de consumo dos países ricos. “O desejo de se tornar um ser humano respeitado pela sociedade os leva a imitar o desejo de consumo dos ricos consumidores dos países ricos”.[25] Ao mesmo tempo, na dimensão da subjetividade, o sujeito introjeta o mundo idealizado como se fosse o seu mundo.
O processo de assimilação “da imagem do ‘consumidor-perfeito’ como modelo de ser humano a ser imitado”, de acordo com Mo Sung, “traz sérios problemas e contradições para a luta de uma sociedade mais justa”.[26] O sujeito que assimila a lógica do opressor (modelo desejado), acaba assumindo a mesma dinâmica opressiva. “Os oprimidos se sentem atraídos pelo opressor, desejam participar da vida deles, ser como eles”.[27] O oprimido que hospeda dentro de si o opressor, como demonstra a Pedagogia do oprimido de Paulo Freire, tem dificuldade de se libertar. “Na ‘imersão’ em que se encontram, não podem os oprimidos divisar, claramente, a ‘ordem’ que serve aos opressores que, de certa forma, ‘vivem’ neles.”[28]
Na cultura de consumo, tal como se vivesse as mesmas emoções de um astro do cinema ou do esporte, que é apresentado nas vitrines e nos discursos publicitários, o sujeito deseja ostentar algo que poucos têm e se sentir parte de uma elite – em linguagem popular, é o “estou podendo”. Daí a força de convencimento que o mercado exerce sobre as pessoas. De acordo com Mo Sung, é mais pela sua capacidade de fascinar do que pelo uso da força bruta ou pela imposição de seu poder econômico que o capitalismo imprime sua dinâmica e logra a ideia de que o mercado é o fundamento e o centro societário. Desse modo, “a busca da riqueza e, com isso, a ostentação das mercadorias de ‘grife’ se tornaram o mais importante objetivo na vida da maioria das pessoas, particularmente os integrados no mercado. A mercadoria tornou-se ‘o’ objeto de desejo”.[29]
Enfim, há um processo de usurpação do desejo quando este é entendido numa dimensão de abertura ao/à Outro/a, à vida que inspira um sentido de humanização e libertação do próprio sujeito, como propõe Lévinas. “Desejo sem fim, de além do ser: des-interessameto, transcendência – desejo do Bem”.[30] O desejo insuflado pelo Infinito é colonizado pela dinâmica mercadológica. Essa é a alma do negócio: um desejo esvaziado de seu sentido de humanidade.


[1] KUNDERA, 2008, p. 251.
[2] HINKELAMMERT, 2013, p. 298.
[3] BELLUZZO, 2013, p. 22.
[4] BELLUZZO, 2013, p. 22.
[5] BELLUZZO, 2013, p. 22.
[6] BELLUZZO, 2013, p. 27.
[7] MARCUSE, Herbert. Ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p. 234.
[8] BELLUZZO, 2013, p. 33.
[9] MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Guanabara, s.d., p. 14.
[10] KEHL, Maria Rita. O inconsciente e o lucro. Família Cristã, São Paulo, ano 68, n. 802, 29 out. 2002.
[11] BOFF, Leonardo. Ética da vida. 2. ed. Brasília: Letraviva, 2000b, p. 136.
[12] FRIEDMAN, 1985, p. 21.
[13] MO SUNG, 2010, p. 55.
[14] HINKELAMMERT, 2013, p. 298.
[15] BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 91.
[16] LEBOW, Victor.  Price Competition in 1955. Journal of Retailing, 1955, p. 03. Disponível em: <http://hundredgoals.files.wordpress.com/2009/05/journal-of-retailing.pdf>. Acesso em: 17 ago. 2015. Our enormously productive economy demands that we make consumption our way of life, that we convert the buying and use of goods into rituals, that we seek our spiritual satisfactions, our ego satisfactions, in consumption.”
[17] LEBOW, 1955, p. 03. “We need things consumed, burned up, worn out, replaced, and discarded at an ever increasing pace.
[18] BAUMAN, Zigmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercado. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 20.
[19] BAUMAN, 2008, p. 22.
[20] MO SUNG, 2010, p. 11.
[21] MO SUNG, 2010, p. 12.
[22] MO SUNG, 2010, p. 12.
[23] AGAMBEN, 2015, p. 91.
[24] MO SUNG, 2010, p. 13.
[25] MO SUNG, 2010, p. 13.
[26] MO SUNG, 2010, p. 13.
[27] MO SUNG, 2010, p. 14.
[28] FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 41. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005, p. 55.
[29] MO SUNG, 2010, p. 10.
[30] LÉVINAS, Emannuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 2000, p. 100. Ver também DALLA ROSA, 2012, p. 62-65.




Desejo mimético e culto ao mercado
No reino do kitsch totalitário, as respostas são dadas de antemão e excluem qualquer pergunta nova. Daí decorre que o verdadeiro adversário do kitsch totalitário é o homem que interroga. A pergunta é como a faca que rasga a cortina do cenário para que se possa ver o que está atrás.[1]
Na secção precedente, assinalo que um dos principais mecanismos que faz funcionar a economia capitalista é a cultura de consumo, de modo que se articula toda uma indústria de marketing, propaganda, que imprime uma dinâmica de vida a ser seguida como desejo mimético. Essa compreensão pode ser ilustrada como, por exemplo, em Hayek, quando ele diz que “inicialmente, um produto novo é, em geral, o capricho dos poucos escolhidos, antes de se tornar algo desejado por todos, passando a fazer parte das necessidades da vida. Pois o luxo de hoje é a necessidade de amanhã”.[2] Porque elas são luxo de uma minoria, as novas parafernálias se tornam objetos de desejo em todos os recantos do mundo. E esse desejo que se torna uma necessidade, mesmo que de forma artificial, move o mundo da economia capitalista.
Na leitura de Mo Sung, “Hayek defende a ideia de que a produção econômica deve estar voltada para satisfazer os desejos da elite, pois estes serão as futuras necessidades das massas. E para a massificação da produção destes bens, é necessário o progresso”.[3] O desejo da maioria imitar o capricho dos poucos escolhidos significa também consumir as novidades do progresso. E essa dinâmica funciona como uma catapulta que impulsiona o progresso, produzindo mais produtos para o deleite consumista.
Ainda na década de 1970, Celso Furtado (1920-2004), um eminente economista brasileiro, chama a atenção para “a crescente hegemonia das grandes empresas, na orientação do processo de acumulação”. Esse processo “traduz-se, no centro, por uma tendência à homogeneização dos padrões de consumo e, nas economias periféricas, por um distanciamento das formas de vida de uma minoria privilegiada com respeito à massa da população”.[4] Em outras palavras, o avanço econômico pela ampliação da produção consumista não se sustenta. No fundo, estamos diante de um mito, uma miragem, na medida em que o acesso aos novos bens de consumo implica em ter recurso, poder de compra, dinheiro.
Com efeito, trata-se um mito que tem sérias consequências como, por exemplo, na fomentação de uma cultura de violência. Nesse sentido, o desejo consumista pode ser traduzido pelo conceito de desejo mimético, como propõe René Girard (1923-2015), em A violência e o sagrado (1972) e Coisas ocultas desde a fundação do mundo (1978). O desejo mimético diz respeito ao processo em que o sujeito internaliza, a partir de uma subjetividade autocentrada, um desejo evocado a partir de outrem, sendo este outro um modelo a ser imitado. Girard propõe que, num primeiro momento, a mimese aproxima o sujeito do outro a ser seguido, numa relação de discípulo e mestre. Então, a partir desse ângulo, o desejo se apresenta como uma força de transformação e de abertura ao novo como um processo que liberta. Esta é uma mimese de aprendizagem.
Entretanto, na medida em que o desejo mimético se estabelece numa relação de competição, em que o outro é recepcionado como um rival ou um obstáculo para a aquisição de um objeto pretendido, o passo seguinte é o da mimese da rivalidade, da hostilidade e da violência. Segundo Girard, “o desejo é a própria crise mimética, a rivalidade aguda em relação ao outro, em todas as atividades ditas ‘privadas’, que vão do erotismo à atividade profissional ou intelectual”.[5] A violência mimética pode ser tanto de forma explícita como simbólica. No caráter simbólico, “este desejo mimético coincide com o contágio impuro; motor da crise sacrificial”,[6] em que se introduz o elemento da vítima de expiação.
O desejo mimético, diz Girard, “destruiria toda a comunidade se não houvesse a vítima expiatória para detê-lo e mimese ritual para impedi-lo de se desencadear”. [7] Nesse caso, a vítima expiatória pode ser um totem, uma vítima animal, uma figura religiosa, que canaliza as energias para as formas rituais. A violência expiatória evita a convergência para a forma da violência direta entre humanos. A crise sacrifical é um elemento fundador da comunidade e da cultura.
Entretanto, quando ocorre o acirramento da rivalidade, sobretudo em sociedades que primam pela competição, frequentemente, o desejo mimético se torna uma mola propulsora de violência explícita. “A violência torna-se o significante desejável absoluto, da autossuficiência divina, da ‘bela totalidade’, que não apareceria mais como tal se deixasse de ser impenetrável e inacessível.”[8] Em última instância, “a possessão não é senão a forma extrema da alienação do desejo do outro”.[9] Muitas vezes, a concorrência cria uma espécie de unidade mimética, em que todos os rivais se unem contra um único adversário. Produz-se, então, a vítima, um bode-expiatório, o diferente (estrangeiros, doentes, judeus...) que deve ser perseguido, sacrificado. Porém, “[...] a vítima deve ser diferente dos membros da comunidade, mas também assemelhar-se a eles”.[10]
Não obstante o processo civilizatório ter criado a lei, o Estado, como um mecanismo de controle da violência sacrifical, o processo de desejo mimético continua ativo e produzido suas vítimas, sejam nos campos de concentração nazistas sejam nas estruturas que produzem injustiça, opressão e toda sorte de violência. Muitas vezes, a injustiça social, a morte de excluídos e inocentes, a destruição ambiental... são realidades anunciadas como sacrifícios necessários. Consuma-se a brutalidade da violência nua e crua, sem subterfúgios. 
Confrontados a essa situação, podemos pensar que os homens irão se sentir frequentemente tentados a devolver o remédio tradicional à eficácia perdida, aumentado cada vez mais suas doses, imolando cada vez mais vítimas em holocaustos sempre pretensamente sacrificais, mas que o são cada vez menos.[11]
Por outro lado, enquanto processo mimético, os injustiçados e oprimidos também respondem com violência. No dizer de Boff, “os oprimidos são violentos porque se encontram, à sua revelia, enquadrados numa sociedade violenta. Eles são feitos vítimas sobre as quais a classe dominante descarrega toda a sua violência e elabora a paz entre os lobos”.[12] Pois bem, na medida em que a ênfase econômica capitalista reforça justamente a mimese da rivalidade, alimenta-se o círculo vicioso de violência. Então, diante desse processo de produção da violência, como um antídoto, no dizer de Boff, “implicaria uma revolução nas relações sociais, baseadas não mais no desejo mimético, mas no desejo solidário e comunitário”.[13] Daí a importância de resgatar e propor dinâmicas solidárias e cooperativas, como mediações propositivas para uma cultura de paz, de justiça, de inclusão do/a Outro/a. Certo, no mundo atual, governado pelo “império do efêmero”,[14] não é o desejo solidário que conta, mas o desejo de consumo.
No dizer de Bauman, “a sociedade contemporânea admite seus membros primeiramente como consumidores [...]. A norma quebrada pelos pobres de hoje, que os coloca à parte e os rotula de ‘anormais’, é a da competência ou aptidão de consumo”.[15] Não fazer parte da sociedade de consumidores, isto é, satisfazer-se com um conjunto finito de necessidades, ou então não ter as condições necessárias (ter dinheiro) para participar significa entrar no rol dos consumidores falhos, portanto, suscetíveis ao descarte. “Os pobres da sociedade de consumidores são inúteis. [...] Desnecessários, indesejados, desamparados – onde é o lugar deles? A resposta mais curta é: fora de nossas vistas”.[16] Isto é, na sociedade de consumidores, os consumidores falhos não são bem-vindos.
Se os indesejados aparecerem nos templos de consumo – os shoppings centers –, para um ‘rolezinho’ (diminutivo de ‘rolê’ ou ‘rolé que, em linguagem informal, significa fazer um pequeno passeio), eles devem ser imediatamente banidos e enquadrados criminalmente.[17] Assim, os shoppings que são também concebidos como espaço de encontro, diversão, desde que seus transeuntes tenham possibilidade de compra, recepcionam os ‘consumidores falhos’ como caso de contensão policial. Nas palavras de Bauman, “só como mercadorias, só se forem capazes de demonstrar seu próprio valor de uso, é que os consumidores podem ter acesso à vida de consumo”.[18] No caso, o valor de uso significa poder de compra.
Quando centenas de jovens, sem poder de compra, encontram-se num shopping, porque muitas de suas comunidades, os quartos de despejo das grandes cidades, não possuem equipamentos públicos (praças, ginásios, escolas abertas...) apropriados para se reunirem, eles estão como que fora de lugar. Então, a sociedade dos que podem consumir – os cidadãos de bem – reage à presença dos indesejados, enquadrando-os na lei da indiferença e da exclusão. Por outro lado, como desejo mimético, há todo um discurso publicitário insuflando ao contrário. É um discurso que diz que frequentar o mundo habitado por consumidores significa incorporar uma estética juvenil globalizada. Esta estética é apresentada como sinônimo de reconhecimento social e autonomia. Para muitos, trata-se de uma condição não acessível. Daí a dinâmica do desejo mimético como uma expressão que elucida, em certa medida, o recrudescimento da violência, tal como ocorre no Brasil. Violência esta que envolve sobretudo a realidade infantojuvenil, mais como vítima do que propriamente promotora dessa condição social. No dizer de Carmen Oliveira,
É assim que o Brasil em tempos de globalização, tornou-se uma sociedade embrutecedora, tanto por produzir a impotência quanto a onipotência diante da desestabilização. Cristalizam-se, em todos os segmentos sociais, a lei do sucesso a qualquer preço e sem limites. Isso ocorre para deixar as novas gerações com uma sensação de descartabilidade, que leva os jovens a uma experiência intensa de investimento absoluto no presente, de transposição de limites e quebras de normas, tornando a violência infanto-juvenil [sic] um sintoma, acima de tudo, social.[19]
O fetiche da mercadoria move o desejo mimético, sinalizando uma necessidade social ou psíquica. Para se sentirem pertencentes a um grupo social, as pessoas são impulsionadas a adquirir o produto da moda – um fetiche. Como destaca Mo Sung, “é por causa do ‘ser’ misterioso e infinito que se busca por ‘trás’, por exemplo, de um carro importado, um grande desejo mimético hoje, que as pessoas não aceitam e nem compreendem o porquê da redistribuição da renda”.[20] Pessoas que não conseguem comprar a mercadoria e nem conseguem superar a mística do fetiche, que está ao redor da mercadoria desejada, sentem-se inferiorizadas, deprimidas. Ao mesmo tempo, assumem uma atitude de indiferença ou mesmo de reação contra aqueles que se insurgem diante do espírito do mercado.
O embrutecimento da sociedade evidencia que há um processo de fragilização dos pactos sociais. Diluem-se as relações de poder reguladas pela esfera política. Na medida em que os neoliberais defendem a solução dos problemas econômicos e sociais pela livre ação do mercado, promove-se uma cultura da indiferença. É a fé na mão invisível, a qual diz que não se deve interferir no mercado. Toda vez que tencionamos conscientemente intervir, o fazemos através dos mecanismos do Estado e dos movimentos sociais, dentre outras possibilidades. E isso é prejudicial ao mercado. Então, “nós os seres humanos devemos abandonar o desejo de construir uma sociedade melhor”.[21]
O Estado deve estar a serviço do capital, seja enquanto mecanismo de controle do povo seja como instrumento de socorro ao próprio sistema capitalista, quando este se encontra em crise. Isso quer dizer que, em si, o capitalismo não se sustenta sem o Estado. Se há crise financeira, como a deflagrada nos Estados Unidos e Europa, desde 2008, os governos logo são convocados a socorrer o sistema, colocando em prática planos de austeridade que cobram da população sacrifícios draconianos. Os recursos públicos que deveriam estar a serviço da população em geral, são drenados para beneficiar o capital.
De acordo com Hinkelammert, ao mesmo tempo em que “a ideologia da societas perfecta conduz à diabolização da solidariedade”, há também um processo de introjeção dessa diabolização. “Todos solidariamente renunciam à solidariedade; todos unidos combatem aqueles que querem estar unidos. Como na pro-slavery-rebellion, os amos dos escravos atuam de forma solidária a favor da escravidão e contra a solidariedade humana”.[22] Questões como justiça social, igualdade de oportunidades, direitos humanos, ética, assim por diante, são consideradas obsessões ou meros sentimentos coletivistas. Um exemplo que ilustra isso, é a condenação proferida por Hayek à Declaração dos Direitos Humanos da Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948. Para esse economista, a Declaração afronta a sociedade de livre mercado, a “Grande Sociedade’, na sua designação.
Todo o documento é, na verdade, lavrado naquele jargão de pensamento organizacional que estamos acostumados a esperar no pronunciamento de líderes sindicais ou da Organização Internacional do Trabalho e que reflete uma atitude comum a empregados do setor privado, funcionários públicos e aos burocratas das grandes empresas, mas que é de todo incongruente com os princípios em que se fundamenta a ordem de uma Grande Sociedade.[23]
Para Hayek, o princípio orientador deve ser “o de que uma política para a liberdade para o indivíduo é a única política que de fato conduz ao progresso”.[24] A obsessão pela igualdade de oportunidades frustra as esperanças de liberdade. Ao neoliberal, ainda que reconheça que “as oportunidades ao alcance dos pobres são muito mais limitadas que as acessíveis aos ricos”,[25] o princípio da igualdade se estabelece pela liberdade de concorrência, a qual, por sua vez, depende da capacidade e da sorte individual. Em suma, como se pode notar, trata-se de um pensamento que pretende justificar uma economia voltada para a arte de enriquecimento (crematística), em prol de uma minoria, a elite do capitalismo mundial.
Assim, a despeito do Estado de bem-estar social que possibilita certa igualdade no período que cobre desde o final da Segunda Guerra ao início dos anos de 1970, o neoliberalismo introduz dinâmicas que acirram a concorrência entre trabalhadores, empresas e nações. De acordo com Beluzzo, com a destituição do Welfare State, a introdução de políticas econômicas liberalizantes passa a promover um enriquecimento cada vez mais elitizado.
Na era do capitalismo ‘turbinado’ e financeirizado, os frutos do crescimento se concentraram nas mãos dos detentores de carteiras de títulos que representam direitos à apropriação da renda e da riqueza. Para os demais, perduravam a ameaça do desemprego, a crescente insegurança e precariedade das novas ocupações, a exclusão social.[26]
Ao redor do discurso que se apoia na ideia de uma mão invisível e no livre mercado, cria-se um tabu, uma interdição. O destino da humanidade deve ser confiado à sociedade de mercado. Não importa se há sofrimento, desemprego e exclusão, porque os sacrifícios são necessários, na visão dos neoliberais. Em outras palavras, como diz Mo Sung “esta mística cruel é o motor secreto do compromisso neoliberal e por isso se expressa no culto, não a Deus da misericórdia e da Vida, mas sim à eficiência no e do mercado”.[27] Enquanto multidões correm às pressas aos templos de consumo, para adquirir o novo aparelho da moda, muitas e muitos são os empobrecidos e empobrecidas que gritam às margens e nos subúrbios da indiferença e da cegueira social, sem falar dos desastres ambientais.


[1] KUNDERA, 2008, p. 249. O termo alemão kitsch indica, no campo da estética, uma obra que é de mau gosto, uma fraude artística.
[2] HAYEK, Friedrich. Os fundamentos da liberdade. São Paulo: Visão, 1983b, p. 45.
[3] MO SUNG, 2010, p. 61.
[4] FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974, p.  69,
[5] GIRARD, René. Coisas ocultas desde a fundação do mundo. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 338.
[6] GIRARD, René. A violência e o Sagrado. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1990, p. 187.
[7] GIRARD, 1990, p. 187.
[8] GIRARD, 1990, p. 187.
[9] GIRARD, 1990, p. 207.
[10] GIRARD, 2008, p. 93.
[11] GIRARD, 2008, p. 166.
[12] BOFF, Leonardo. A voz do arco-íris.  Brasília: Letraviva, 2000a, p. 57,
[13] BOFF, 2000a, p. 58.
[14] LIPOVETSKY, Gilles.  O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. 9. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
[15] BAUMAN, 2008, p. 160.
[16] BAUMAN, 2008, p. 160.
[17] Referência aos grandes contingentes de jovens da periferia (São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre...) que se mobilizam, por intermédio de redes sociais (Facebook), para um ‘rolezinho’ em centros de compras.
[18] BAUMAN, 2007, p. 24.
[19] OLIVEIRA, Carmen Silveira. Sobrevivendo ao inferno: a violência juvenil na contemporaneidade. Porto Alegre: Sulina, 2001, p. 238.
[20] MO SUNG, 2010, p. 74.
[21] MO SUNG, 2010, p. 103.
[22] HINKELAMMERT, 2013, p. 297.
[23] HAYEK, 1985, p. 127.
[24] HAYEK, 2010, p. 222.
[25] HAYEK, 2010, p. 113.
[26] BELLUZZO, 2013, p. 173.
[27] MO SUNG, 2010, p. 104.