Somos sujeitos aprendentes. A vida e o sentido do humano se constituem nas intermitentes e infinitas travessias, no encontro com o/a Outro/a. E o encontro com a realidade é o chão da fé vivida que profetiza a esperança.
quarta-feira, 28 de novembro de 2018
terça-feira, 20 de novembro de 2018
A narrativa de Carolina de Jesus: Quartos de despejo
O texto que segue é um trecho modificado de meu livro "Economia para a vida" (Sinodal: 2016, p. 59-68) que compartilho neste espaço, para motivar o resgate de uma escritora, Carolina de Jesus, cujas palavras continuam repercutindo como testemunho dos clamores que vêm das periferias. Antes do texto, segue também um vídeo (do Canal Curtas) para apresentar o contexto da autora.
O rosto que clama por uma
economia da vida é uma palavra que fissura a consciência do sujeito e clama
pela condição do outro humano. Trata-se do clamor que brota como nas palavras
de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), neta de escravos e moradora de uma
comunidade pobre da cidade de São Paulo, que registrou em seu diário, o Quarto de despejo, o dia a dia da
miséria e da vida infausta de quem vive em favela – “o quarto de despejo de uma
cidade”.[1] Pois, transcendendo ao
período histórico retratado (1955-1960), o diário é um testemunho atual do
escândalo das injustiças que geram exclusão e morte de inocentes, sobretudo de
crianças e jovens.
A narrativa de Carolina
de Jesus é a mesma de quem cotidianamente, diante da miséria, perde a motivação
de viver: “eu estou começando a perder o interesse pela existencia [sic]”.[2] Entretanto, nesse grito de
desesperança, como eco de Jesus na cruz– “Deus meu, Deus meu, por que me
abandonaste?” (Mt 27.46) –, Deus estabelece morada solicitando a presença de
quem é próximo. Nas palavras dos bispos reunidos em Puebla (1979), “esta
situação de extrema pobreza generalizada adquire, na vida real, feições
concretíssimas, nas quais deveríamos reconhecer as feições sofredoras do
Cristo, o Senhor (que nos questiona e interpela)”.[3] Por isso, em cada grito,
em cada angústia, há uma “revolta [que] é justa”.[4] E, nesse desejo de
justiça, como um sopro de esperança – ressurreição – que restitui a vida, há o
apelo de Deus: “Eu vi, eu vi a miséria do meu povo” (Ex 3.7).
Como escreveu Mandela, “a
esperança é uma arma poderosa, mesmo quando tudo o mais parece perder a força”.[5] De fato, no humano, Deus
se faz morada quando a própria esperança não é mais permitida. Daí o sentido de
uma Palavra que solicita a incontornável resposta ética, uma resposta de firme
denúncia das condições injustas que geram sofrimento e morte. Ao mesmo tempo, uma
firme resposta de solidariedade transformadora que tem como critério a
sabedoria do amor, isto é, o amor a serviço do próximo. No sentido de Moltmann,
trata-se do amor expresso pela sabedoria dos profetas, em que a causa do pobre
e do indigente (cf. Jr 22.16) demanda a “ética da paz justa”. Isso porque “justiça é, segundo o Antigo Testamento,
um nome de Deus (Jr 23.6) e, segundo o Novo Testamento (2Pd 3.13), a
materialização da presença da paz na nova terra”.[6]
A justiça não é a justiça
legalista que pede sacrifícios, nem a justiça dos tribunais, mas é a justiça
que liberta e restaura o humano. Trata-se da justiça que “abrange todos os
aspectos do salvar e do compadecer-se, do auxiliar e do curar, do justificar e
restaurar”, que implica tanto o humano como de maneira especial a Mãe Terra.[7] Desse modo, “o clamor por
justiça é, para os impotentes e humilhados, o clamor por Deus. Inclusive o
silêncio do povo fatigado e sobrecarregado expressa o clamor por Deus e pela
sua justiça.”[8]
Com efeito, esse é o
conteúdo da ‘justa revolta’ de Carolina de Jesus, um clamor carregado de
sonhos, mesmo que frustrados, quando expressa em seu diário: “[hoje, é]
aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendi comprar um par de sapatos
para ela. Mas o custo dos generos alimenticios nos impede a realização dos
nossos desejos. [...] Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para
ela calçar [sic]”.[9]
Do mesmo modo, é uma
justiça da palavra compartilhada com o retirante que está chegando, muitas
vezes, cabisbaixo e angustiando, mas que carrega o desejo de poesia, do verde
das árvores, do perfume das flores, do zumbido das abelhas, do colorido e do
canto dos pássaros. No testemunho de Carolina de Jesus, “chegam novas pessoas
para a favela. Estão esfarrapadas, andar curvado e os olhos fitos no solo como
se pensasse na sua despedida por residir num lugar sem atração”. Pois, “um
lugar que não se pode plantar uma flor para aspirar o seu perfume, para ouvir o
zumbido das abelhas ou o colibri acariciando-a com seu frágil biquinho. O unico
perfume que exala na favela é a lama podre, os excrementos e a pinga [sic]”.[10]
Daí a narrativa de quem
não quer papel apenas para ‘catar’ e receber alguns trocados tão necessários
para cuidar de quem tem fome – “quem passa fome aprende a pensar no próximo, e
nas crianças”.[11]
Mas, também há o desejo de dizer e registrar, em papel, a palavra de sonho e
fantasia, porque, ali, a felicidade é realidade nascendo como esperança:
“enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na
luz do sol. [...] É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que
estou na favela. [...] As horas que sou feliz é quando estou residindo nos
castelos imaginários [sic]”.[12]
Aos pequeninos, Carolina
de Jesus dirige sua palavra de ternura, como uma justiça de quem cuida: “o meu
sorriso, as palavras ternas e suaves, eu reservo para as crianças”.[13] Mas, há também a angústia
diante da injusta fome: “como é horrível um filho comer e perguntar: ‘tem mais?’.
Esta palavra ‘tem mais’ fica oscilando dentro do cerebro de uma mãe que olha as
panela e não tem mais [sic]”.[14] Então, há a palavra de
regozijo quando o justo se alimenta: “Fiz a comida. [...] Que espetaculo
deslumbrante! As crianças sorrindo vendo a comida ferver nas panelas. Ainda
mais quando é arroz e feijão, é um dia de festa para eles [sic]”.[15] Por isso, como diz
Hinkelammert,
O
mau da pobreza não é a fome. A fome é algo bom. O mau é a impossibilidade de
satisfazer a fome. A fome é a contrapartida da satisfação sensual, e o gozo em
sua totalidade contém a fome como uma parte. A fome é parte do gozo. Ter fome é algo bom, se isto termina em uma boa
refeição; sem fome anterior, a melhor refeição não serve. A pobreza, como
desespero pela fome, deriva-se da impossibilidade de satisfazê-la. A maldade da
pobreza só surge quando após a fome não vem a refeição, após a sede a bebida,
após o frio o calor agradável e ao calor uma boa brisa refrescante.[16]
A alimentação não é uma
concessão, uma caridade, uma ação assistencial, mas um direito básico. Como
disse Dom Morelli, em entrevista ao jornal Zero Hora, diante da realidade da
fome que atinge sobretudo crianças, “não é
porque tenho pena de criança com fome. Tenho vergonha. A criança privada do
alimento fica mirrada, não se desenvolve, a humanidade dela foi negada e a
minha foi atingida.[...]
Ela [alimentação] é um direito inalienável do ser humano”.[17]
Entende-se, por conseguinte, que o
acesso à alimentação é muito mais uma questão de distribuição, a qual está
concentrada, do que propriamente de produção.[18]
Diante da abundância de alguns que demanda em miséria
de outros, no Quarto de despejo, há a
palavra de quem testemunha o sofrimento do faminto e, ao mesmo tempo, denuncia
o opulento que gera a injustiça. “Quando eu fui catar papel encontrei um preto.
Estava rasgado e sujo que dava pena. [...] Indigno para um ser humano. [...]
Não estava embriagado, mas vacilava no andar. Cambaleava. Estava tonto de
fome”.[19]Assim
como tantos outros, ele era um retirante que, não podendo mais viver nas
fazendas, onde era explorado, foi tentar a vida na cidade grande, mas não
encontrou emprego porque já era idoso.
No
Quarto de despejo, há também a poesia
de quem tem lado. É a poesia política de uma causa que é justa. “Os políticos
sabem que sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo
oprimido. [...] Eu estou ao lado do pobre, que é braço. Braço desnutrido.
Precisamos livrar o paiz dos políticos açambarcadores [sic].”[20]
Essa é uma poesia que admoesta, com firmeza, a política da demagogia, do
discurso ludibriante, da manipulação, do político que, depois do voto,
“divorcia-se do povo. Olha o povo com os olhos semi-cerrados. Com um orgulho
que fere a nossa sensibilidade”. Então, com lucidez, a poetisa alerta: “a democracia está perdendo seus
adeptos. No nosso paiz tudo está enfraquecendo. [...] A democracia é fraca e os
políticos fraquíssimos. E tudo que está fraco, morre um dia [sic].”[21]
O
farto que está fechado em sua indiferença e vive da injustiça não compreende o
esfomeado. Donde o sentido da palavra de Carolina de Jesus que repudia a
caridade do desprezo, da especulação comercial: “[...] chegou um caminhão aqui
na favela. O motorista e o seu ajudante jogam umas latas. É linguiça enlatada.
[...] Já está pobre”. Pois “é assim que fazem os comerciantes
insaciáveis. Ficam esperando os preços [dos produtos] subir na ganancia de
ganhar mais. E quando apodrece jogam fora para os corvos e os infelizes
favelados [sic]”.[22]
A
partir do Quarto de despejo, emerge o
justo e incontornável grito que vem da Outra Margem: “nós somos pobres, viemos
para as margens do rio [Tietê]. Gente da favela é considerado marginais. [...]
Os homens desempregados substituíram os corvos que voavam as margens do rio,
perto dos lixos [sic].”[23]
É a narrativa de quem “[luta] contra a escravidão atual – a fome!.”[24]
Por isso, é uma palavra que repudia o político do discurso demagógico, denuncia
a falsa filantropia e admoesta aquele que faz da miséria um mero cenário para
‘fita de cinema’ – “o que se nota é que ninguem gosta da favela, mas precisa
dela. [...] Eles estão filmando as proezas do Promessinha. Mas o Promessinha
não é da nossa favela [sic]”.[25]
Por
fim, a palavra que clama em o Quarto de
despejo, como palavra que se funde àquela de Jesus, o nazareno (cf. Mt
8.20), pede o pão que sacia a fome e, ao mesmo tempo, o pão da fraternidade e
da igualdade. “As aves deve ser
mais feliz que nós. Talvez entre elas reina amizade e igualdade. (...) O mundo
das aves deve ser melhor do que dos favelados, que deitam e não dormem porque
deitam-se sem comer.”[26] Entende-se, nas palavras de Gutiérrez, que “a solidariedade com o pobre
oferece uma base firme para que se possa falar de Deus. [...] O Senhor pede a
solidariedade com os marginalizados e o oprimidos. É a ética do Êxodo. Deus
está presente neles [...]”.[27]
Em suma, é o Deus que clama no rosto do povo que luta pela sua libertação.
[1] JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma
favelada. São Paulo: Ática, 1993, p.171. A autora, que nasceu no interior de
Minas Gerais, foi catadora de papel e viveu na comunidade do Canindé, às
margens do rio Tietê, em São Paulo, onde hoje fica o estádio da Portuguesa de
Desportos.
[2] JESUS, 1993, p. 30. Os erros de
português, contidos nos originais da autora, foram conservados pelo editor para
sinalizar o realismo da obra que retrata a vida de um povo alijado, inclusive,
da educação formal.
[3] Conselho
Episcopal Latino-Americano (celam).
Conclusões da Conferência de Puebla. 13.
ed. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 94.
[4] JESUS, 1993, p. 30.
[5] MANDELA, Nelson. Conversas que eu tive comigo. Rio de
Janeiro: Rocco, 2010, p. 176.
[6] MOLTMANN, Jürgen. Ética da esperança. Petrópolis: Vozes,
2012, p. 195.
[7] MOLTMANN, 2012, p. 211.
[8] MOLTMANN, 2012, p. 212.
[9] JESUS, 1993, p. 171.
[10] JESUS, 1993, p. 42.
[11] JESUS, 1993, p. 26.
[12] JESUS, 1993, p. 52.
[13] JESUS, 1993, p. 34.
[14] JESUS, 1993, p. 34.
[15] JESUS, 1993, p. 38.
[16] HINKELAMMERT, 2013, p. 358.
[17] MORELLI,
Mauro. Entrevista:
alimentação não é questão de caridade ou de assistência social. Zero Hora, Porto Alegre, 7.maio. 2014.
Entrevista concedida a Marcelo Monteiro.
[18] Cf. ALCÁZAR, José E. Eliminar a
fome requerer inteligência e ética. IHU
On-Line, São Leopoldo, n. 442, 5 maio. 2014, p. 07-10: “Hoje, segundo dados
da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO, há
alimentos no mundo para alimentar folgadamente a população mundial. Os
alimentos estão no mercado internacional, mas não chegam às mesas nem às bocas
dos que têm fome. Em outras palavras, o problema não é a produção de alimentos,
mas o acesso aos mesmos”.
[19] JESUS, 1993, p. 48.
[20] JESUS, 1993, p. 35.
[21] JESUS, 1993, p. 34-35.
[22] JESUS, 1993, p. 29.
[23] JESUS, 1993, p. 48.
[24] JESUS, 1993, p. 27.
[25] JESUS, 1993, p. 27. A autora se
refere à filmagem do filme “Cidade Ameaçada” (1960), dirigido por Roberto
Farias, em que Promessinha era um dos personagens.
[26] JESUS, 1993, p. 30.
[27] GUTIÉRREZ, 2004, p. 200.
Assinar:
Postagens (Atom)