O livre-mercado como religião
É
preciso contrapor os direitos concretos à vida a esta ideologia ilusória da
vida que na realidade não é mais do que uma ideologia da morte. A lógica do
capital é a morte, e a mística do capital é a mística da morte. Por trás da
lógica do mercado total aparece a mesma mística da morte que anteriormente
esteve por trás da lógica da guerra total dos estados fascistas. A vida não
pode ser afirmada a não ser concebendo-a e vivendo-a a partir do que é a sua
base real: os direitos concretos à vida de todos os seres humanos [a natureza incluída].[1]
Introdução
Denso em seu conteúdo e
eminentemente atual, O capitalismo como
religião é um pequeno texto de Walter Benjamin, escrito em 1921.
Efetivamente, Benjamin desvela o caráter religioso que subsiste na dinâmica
capitalista. O capitalismo é uma religião
que “está a serviço da resolução das mesmas preocupações, aflições e
inquietações a que outrora as assim chamadas religiões quiseram oferecer
resposta.”[2]
Porém, em sua resolução, a religião capitalista é um caminho que conduz a
humanidade à “casa do desespero na solidão absoluta”.[3]
Como parasita do
cristianismo, o capitalismo é a celebração de um culto que não tem trégua e nem
piedade. Para ele, não há um dia sagrado, por que todos os dias devem ser
santificados ao seu culto. Então, faltar à sua festa, com toda “a pompa
sacral”, é assumir a culpa de quem não é apto para ingressar em seu santuário.
Por fim, enquanto das antigas religiões retira-se toda esperança na
transcendência de Deus, proclamando-se seu esfacelamento (Nietzsche), com o
capitalismo, ‘deus’ não está morto. Entretanto, é um ‘deus’ feito à imagem
impressa nos ornamentos das cédulas bancárias, diante da qual, desde que se prostre, o ser humano é um
ser convertido em super-homem que pode tudo. “Dessa religião é que seu Deus
precisa ser ocultado e só pode ser invocado no zênite de sua culpabilização. O
culto é celebrado diante de uma divindade imatura; toda representação dela e
toda ideia sobre ela viola o mistério de sua natureza”.[4]
O culto ao capital é,
em outras palavras, a “idolatria do mercado”, na expressão de Hinkelammert e
Assmann em livro homônimo. “Os deuses econômicos são deuses óbvios. Tão óbvios
no seu caráter de deuses reais e verdadeiros, que nem nos ocorre chamá-los de
falsos. Sua identidade se ocultou no funcionamento da economia”.[5]
Pois, “hoje todo mundo está ameaçado de ser sacrificado em nome da lei da
história, que se formula como lei do mercado. É necessária a afirmação da
liberdade para impor-se a esta lei e assegurar a vida humana, para que não seja
sacrificada”.[6]
Por isso, como um antídoto, “denunciar os deuses demasiado óbvios, falar de
idolatria no terreno da economia (e em outros terrenos) é desfazer a sua
obviedade”.[7]
Para tanto, a reivindicação da reflexão teológica, a realidade da fé refletida no
interior e a partir da economia, abre uma perspectiva de libertação. Ou seja,
“para poder reivindicar a liberdade necessita-se de fé”.[8]
É a fé no Deus da vida, o horizonte que interpela pela condição das pessoas,
especialmente dos empobrecidos que têm suas vidas destruídas pelos deuses do
mercado.
Na
esteira de Benjamin e, principalmente, perscrutando o pensamento
hinkelammertiano, neste capítulo, analiso o caráter religioso e as crenças que
se ocultam na economia contemporânea. O itinerário segue o indicativo de
Hinkelammert, segundo o qual “a promessa da salvação/boa notícia do liberalismo
econômico” tem quatro eixos: “a abundância (satisfação dos desejos); a promessa
de um crescimento infinito; a unidade da humanidade mediante o mercado”; e, por
fim, “a aceitação da destruição do ser humano e da natureza, mas confiando nas
forças salvadoras do mercado sem fim, garante o caminho para superar a própria
destruição.”[9]
O conteúdo dessa promessa é o fio condutor da análise que prossegue.
[1] ASSMANN, Hugo; HINKELAMMERT, Franz. A idolatria do mercado: ensaio sobre
economia e teologia. São Paulo: Vozes, 1989, p. 197.
[3]
BENJAMIN, 2013, p. 22.
[4]
BENJAMIN, 2013, p. 22.
[5]
ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 83.
[6]
HINKELAMMERT, Franz. Economia e
teologia: as leis do mercado e a fé. Boletim
Teológico, São Leopoldo, v. 11, n. 4, abr.1990, p. 58.
[7]
ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 83.
[8] HINKELAMMERT, 1990, p. 58.
[9] HINKELAMMERT, Franz. Crítica da razão utópica. Chapecó: Argos, 2013, p. 297.