quinta-feira, 19 de março de 2015

O LIVRE-MERCADO COMO RELIGIÃO




O livre-mercado como religião

É preciso contrapor os direitos concretos à vida a esta ideologia ilusória da vida que na realidade não é mais do que uma ideologia da morte. A lógica do capital é a morte, e a mística do capital é a mística da morte. Por trás da lógica do mercado total aparece a mesma mística da morte que anteriormente esteve por trás da lógica da guerra total dos estados fascistas. A vida não pode ser afirmada a não ser concebendo-a e vivendo-a a partir do que é a sua base real: os direitos concretos à vida de todos os seres humanos [a natureza incluída].[1]
Introdução

Denso em seu conteúdo e eminentemente atual, O capitalismo como religião é um pequeno texto de Walter Benjamin, escrito em 1921. Efetivamente, Benjamin desvela o caráter religioso que subsiste na dinâmica capitalista. O capitalismo é uma religião que “está a serviço da resolução das mesmas preocupações, aflições e inquietações a que outrora as assim chamadas religiões quiseram oferecer resposta.”[2] Porém, em sua resolução, a religião capitalista é um caminho que conduz a humanidade à “casa do desespero na solidão absoluta”.[3]
Como parasita do cristianismo, o capitalismo é a celebração de um culto que não tem trégua e nem piedade. Para ele, não há um dia sagrado, por que todos os dias devem ser santificados ao seu culto. Então, faltar à sua festa, com toda “a pompa sacral”, é assumir a culpa de quem não é apto para ingressar em seu santuário. Por fim, enquanto das antigas religiões retira-se toda esperança na transcendência de Deus, proclamando-se seu esfacelamento (Nietzsche), com o capitalismo, ‘deus’ não está morto. Entretanto, é um ‘deus’ feito à imagem impressa nos ornamentos das cédulas bancárias, diante da qual, desde que se prostre, o ser humano é um ser convertido em super-homem que pode tudo. “Dessa religião é que seu Deus precisa ser ocultado e só pode ser invocado no zênite de sua culpabilização. O culto é celebrado diante de uma divindade imatura; toda representação dela e toda ideia sobre ela viola o mistério de sua natureza”.[4]
O culto ao capital é, em outras palavras, a “idolatria do mercado”, na expressão de Hinkelammert e Assmann em livro homônimo. “Os deuses econômicos são deuses óbvios. Tão óbvios no seu caráter de deuses reais e verdadeiros, que nem nos ocorre chamá-los de falsos. Sua identidade se ocultou no funcionamento da economia”.[5] Pois, “hoje todo mundo está ameaçado de ser sacrificado em nome da lei da história, que se formula como lei do mercado. É necessária a afirmação da liberdade para impor-se a esta lei e assegurar a vida humana, para que não seja sacrificada”.[6] Por isso, como um antídoto, “denunciar os deuses demasiado óbvios, falar de idolatria no terreno da economia (e em outros terrenos) é desfazer a sua obviedade”.[7] Para tanto, a reivindicação da reflexão teológica, a realidade da fé refletida no interior e a partir da economia, abre uma perspectiva de libertação. Ou seja, “para poder reivindicar a liberdade necessita-se de fé”.[8] É a fé no Deus da vida, o horizonte que interpela pela condição das pessoas, especialmente dos empobrecidos que têm suas vidas destruídas pelos deuses do mercado.
Na esteira de Benjamin e, principalmente, perscrutando o pensamento hinkelammertiano, neste capítulo, analiso o caráter religioso e as crenças que se ocultam na economia contemporânea. O itinerário segue o indicativo de Hinkelammert, segundo o qual “a promessa da salvação/boa notícia do liberalismo econômico” tem quatro eixos: “a abundância (satisfação dos desejos); a promessa de um crescimento infinito; a unidade da humanidade mediante o mercado”; e, por fim, “a aceitação da destruição do ser humano e da natureza, mas confiando nas forças salvadoras do mercado sem fim, garante o caminho para superar a própria destruição.”[9] O conteúdo dessa promessa é o fio condutor da análise que prossegue.


[1]  ASSMANN, Hugo; HINKELAMMERT, Franz. A idolatria do mercado: ensaio sobre economia e teologia. São Paulo: Vozes, 1989, p. 197.
[2] BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 21.
[3] BENJAMIN, 2013, p. 22.
[4] BENJAMIN, 2013, p. 22.
[5] ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 83.
[6] HINKELAMMERT, Franz. Economia e teologia: as leis do mercado e a fé. Boletim Teológico, São Leopoldo, v. 11, n. 4, abr.1990, p. 58.
[7] ASSMANN; HINKELAMMERT, 1989, p. 83.
[8] HINKELAMMERT,  1990, p. 58.
[9] HINKELAMMERT, Franz. Crítica da razão utópica. Chapecó: Argos, 2013, p. 297.